Sangue, suor e lágrimas, filme com Jake Gyllenhaal na Netflix é um nocaute no coração

Sangue, suor e lágrimas, filme com Jake Gyllenhaal na Netflix é um nocaute no coração

No mesmo diapasão que a ideia de vida, restruge o conceito de morte, não exatamente sua oposição, não justamente seu complemento, mas um amálgama dos dois, com sua natureza tão peculiar. Castigo do qual ninguém escapa, morrer é um lembrete da própria vida quanto à verdade inexorável de que a maldade toda deste mundo, a ignorância, a ignomínia, a truculência, o gosto por exaltar comportamentos sabidamente abomináveis, todas essas manifestações do que há de mais perverso no gênero humano, passam, fenecem junto com a matéria, ou mesmo pouco antes, na medida em que, aquele que arrosta seu derradeiro algoz o encara sem máscaras, sem  deambulações, conservando a essência de seus últimos pensamentos estritamente voltada ao acerto de contas consigo mesmo, o mais sincero que puder. Ao longo de uma única vida, são tantas as empreitadas em que o homem se devasta, ou por sua própria incúria ou por ceder às seduções quase pueris que lhe atravessam o caminho, paridas de gente próxima ou recém-chegada, que decerto muito antes que se possa convencer de um erro qualquer, por mais insignificante que pareça, o espírito do homem já principia a acusar a tristeza fundamental que só a morte carrega, e a partir de então só a ele cabe dar termo à questão.

Além de um sofrimento que pode ser mais ou menos suportável a depender de algumas variáveis, a morte de quem nos é caro sempre vem acompanhada de mudanças. O desaparecimento físico daquela pessoa vai se convertendo numa espiral de revelações que tocam muito mais a nós mesmos, e com as quais raramente sabemos lidar. Ao passo que uns se descobrem donos de uma resiliência a toda prova, outros se surpreendem com a fraqueza que os assola sem descanso, progressivamente, até que a apatia silenciosa que se acumula em cada célula eclode num movimento diametralmente oposto, de subversão, de metamorfose, para a melhor ou para a pior. Já vem de algum tempo a fama de Antoine Fuqua quanto a narrar histórias de tipos brutos, até um tanto marginais, forçados a encarar uma fase de desdita. O diretor repisa esse argumento em “Nocaute” (2015), apresentando um personagem acostumado à glória e ao sucesso que perde o que tinha de mais precioso, até que decide reagir.

O universo do boxe se desvela em pílulas no roteiro de Kurt Sutter, criador de “Filhos da Anarquia” (2008-2014), uma das séries mais populares da televisão americana, e não por acaso também centrada em temas nada digestivos. Fuqua aproveita bem as sutilezas do texto de seu colaborador, como se assiste logo na sequência inicial. Billy Hope, o célebre pugilista vivido por Jake Gyllenhaal, tem a mão esquerda enfaixada para mais uma luta, fazendo uma alusão óbvia ao nome original do filme, “Southpaw” (“pata traseira”, em tradução livre), impossível de se registrar por causa do nome escolhido para a versão em português. Nesse primeiro combate, Hope, claro, sai vencedor, observado de perto pela mulher, Maureen, de Rachel McAdams, e o empresário Jordan Mains, desempenho contidamente seguro do rapper 50 Cent. O diretor parece ter pressa de lançar seu protagonista no limbo de tragédia e consequente instabilidade psicológica e explicações fundamentais sobre o temperamento que Hope adota durante o processo de luto restam irreparáveis. Gyllenhaal, no entanto, consegue fazer crível a agonia de seu personagem, mormente quando se vê às voltas com a separação, inesperada e compulsória, da filha, Leila, de uma Oona Laurence assombrosamente madura.

A imagem da redenção de Hope só se avulta mesmo na undécima hora, momento em que sobe ao ringue contra Miguel Escobar, de Miguel Gomez, com quem partilha o passado que sustenta o filme. Um lutador solitário, à cata da esperança perdida: é o que esse homem quer ser num dos filmes sobre o boxe (e seus amaríssimos atletas) mais secos da história do cinema recente.


Filme: Nocaute
Direção: Antoine Fuqua
Ano: 2015
Gêneros: Drama/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.