Definitivamente vale a pena assistir, novo filme da Netflix vai te emocionar até o último segundo Divulgação / OGM Pictures

Definitivamente vale a pena assistir, novo filme da Netflix vai te emocionar até o último segundo

Conquistar o mundo implica renúncias. Cada homem é um universo particular dotado de ideias próprias, vontades próprias, necessidades as mais íntimas, tantas expectativas acerca da vida, todos os sonhos do mundo — inclusive aqueles que sabe que jamais vai chegar a viver. Essa aspereza de tudo quanto envolve o que não se vê resvala na identidade mesma de cada pessoa; todos, ainda que uns mais que outros, somos confrontados com nossas fraquezas da aurora ao crepúsculo, do berço ao túmulo. Lidar com essas companhias involuntárias, nunca bem-vindas em sua onipresença sufocante, é um exercício metódico de profunda fé no existir, no que podemos fazer de verdadeiramente excepcional por nós mesmos. Busca-se desesperadamente por alguma beleza capaz de justificar o sofrimento todo que é a vida, mas nem sempre se entende que a vida transforma em beleza muito do que enxergamos como outra coisa qualquer. Mesmo o ridículo, o patético, o dramático da vida tem tanta beleza quanto o romance mais tolamente sereno, com a ressalva de que romance serenos podem nunca nos fazer ter o gosto do devaneio que aparta as nossas das vidas das demais criaturas.

O amor é o comportamento mais racional que alguém pode assumir. Ninguém ama sozinho, por óbvio, mas o mais humano dos sentimentos perpassa aspectos diversos da vida de uma pessoa, a começar pelo desenvolvimento cognitivo. Para amar e deixar ser amado, é preciso o mínimo de discernimento, de agilidade de raciocínio, de desembaraço frente às circunstâncias verdadeiramente perturbadoras que definem em que grau duas pessoas estão de fato comprometidas uma com a outra. Envolver-se com alguém significa estar disposto a, recorrentemente, confessar seus defeitos até que eles, afinal, não resistam e comecem a ceder, e é impossível atingir esse resultado sem maturidade. Esse é o ponto em “Não Vá” (2022), um arrazoado das situações em que um homem visivelmente descompensado lida (mal) com seus demônios particulares, movido por um conceito errôneo de masculinidade. O turco Ozan Açiktan remexe esse já revirado baús de ossos de todas as culturas, deixando claro que este é um problema muito mais íntimo que social.

Semih, o protagonista interpretado por Burak Deniz, encarna males muito comuns deste nosso tempo. O roteiro de Sami Berat Marçali se move em círculos, intencionalmente ambíguo, e Deniz entende bem a proposta. O espectador logo é capaz de elencar alguns adjetivos nada lisonjeiros com que se pode classificar Semih com toda a justiça — espaçoso, folgado, algo indolente, e, claro, bastante imaturo —, ao passo que também percebe sua natureza atormentada, repleta de um grande fardo de conflito. É a deixa para que Açiktan explore a tolerância de seu público ao apresentar a instabilidade emocional do personagem a partir de um namoro tão cálido quanto turbulento. A boa performance de Dilan Çiçek Deniz proporciona ao enredo o contraponto narrativo, momento em que se agudiza uma indiscutível psicopatia desse espírito fragmentado. É para a namorada que Semih manifesta seu melhor e seu pior — o trecho em que ele tenta justificar a ausência no velório da avó da namorada é o ápice de sua canalhice —, e a ninguém escapa a irritação crescente de verificar que, por mais que faça, termina sempre absolvido. Inclusive por faltas e rendimento abaixo do admissível no trabalho, ambiente impessoal por excelência na vida do homem.

O desfecho do filme indica uma sincera conversão de Semih, legitimada pelo amigo com quem cruzara numa hora difícil. Mudar de vida nunca é fácil, recomeços são sempre espinhosos, e essa é uma verdade que todos conhecemos bem. “Não Vá” é a história de um homem que se reencontra consigo a tempo, sem mais tempo a perder. Nem todos temos essa sorte.


Filme: Não Vá
Direção: Ozan Açiktan
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.