Ser escritor na América Latina exigiu por um bom tempo a missão dupla de produzir uma obra literária, intelectual, e de construir nações. Talvez, com “Facundo”, Domingos Sarmiento tenha sido o caso exemplar e máximo: o grande homem de letras que assumiu o comando de seu país (a Argentina) no século 19. Poetas, bacharéis, artistas, sujeitos letrados, em algum momento eles foram chamados a dar as cartas em sociedades antes colonizadas — de forma catastrófica, diga-se — por espanhóis e portugueses.
O último sobrevivente da tradição política/letras é o peruano Mario Vargas Llosa. Trata-se do sujeito que conquistou tudo que um escritor poderia sonhar. Seus livros são muito estudados nas maiores universidades pelo mundo afora, as vendas já o transformaram em protagonista da “República Mundial das Letras”, e os artigos políticos são extremamente influentes nos países de língua espanhola. E o coroamento de tudo foi, sem dúvida, o recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, no ano de 2010.
Mas essa consagração definitiva veio numa fase estranha de sua trajetória. É interessante observar que a produção literária do peruano se encontra num estágio de absoluta irrelevância. Ele escreve romances históricos com assuntos aleatórios, tendo quando muito ponto de contato com seu engajamento liberal. Neste sentido, os artigos para a imprensa nos chocam pelo primitivismo de uma defesa cega do liberalismo econômico, numa região que está em fase de terra arrasada por conta do chamado neoliberalismo.
Em um ensaio, o crítico norte-americano Neil Larsen alfinetou Vargas Llosa e o chamou de “o realista como um neoliberal”. Para ele, assim como havia o malfadado “realismo socialista” dos soviéticos no passado, o autor de “Travessuras da Menina Má” havia forjado o modelo do “realismo neoliberal”. Uma pregação anticomunista (aliás, absurda) passou a nortear os escritos do peruano na imprensa. Chegou-se a um ponto tão sério que, como diz o meme da internet, precisamos falar de Mario Vargas Llosa.
A crítica mais incisiva partiu do sociólogo argentino Atilio Borón, em 2019, com o livro “O Feiticeiro da Tribo — A Farsa de Mario Vargas Llosa e do Neoliberalismo na América Latina”. O autor teve a paciência de Jó de ler, analisar detidamente e desmontar as teses do livro “O Chamado da Tribo”, no qual o romancista peruano traz uma lista de autores liberais que, segundo ele, devem ser lidos por serem “grandes pensadores do nosso tempo”.
Liberal engajado
A América Latina se afundou nos delírios das reformas liberais desde os anos 1990, e Vargas Llosa publica um livro para elogiar as fontes que levaram à tragédia do continente. Só pode ser mesmo má-fé, ignorância ou sadismo. Pode-se pensar em reincidência, pois ele (Mario) patrocinou o livro “Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano”, escrito por seu filho para criticar as ideias “de esquerda”. A obra é tão sem noção e desinformada, que foi lançada às vésperas da crise financeira que arrasou a América Latina em 1997.
Para Borón, o peruano carrega erros primários em seus escritos engajados no liberalismo. E tornou-se um problema grave, na prática, com a imensa difusão de suas ideias na imprensa de língua espanhola, no momento que a extrema direita tomava o poder pelo voto para vandalizar a democracia de vários países: “VLL [Vargas Llosa] é hoje o mais importante intelectual público da direita no mundo de língua espanhola e talvez um dos mais importantes em nível mundial. Sua incansável empreitada como propagandista das ideias liberais ao longo de quase meio século e a formidável difusão dos seus escritos — reproduzidos ad nauseam em toda a imprensa ibero-americana e nos grandes meios de comunicação dos Estados Unidos e Europa — transformaram o peruano no maior profeta do neoliberalismo contemporâneo”.
O mergulho de Vargas Llosa na política partidária está documentado no livro “Peixe na Água” (1994), as memórias que entrelaçam sua infância e a experiência de quando concorreu à presidência do Peru em 1989. No livro, ele conta a passagem de suas crenças à esquerda na juventude para o engajamento neoliberal na maturidade. O primeiro capítulo é um relato extraordinário do encontro do pequeno “Marito” com o pai — é o que se salva da narrativa. Na parte das eleições, por sua vez, revela-se o político incompetente que conseguiu a façanha de perder a disputa para Alberto Fujimori.
É um mistério o fato de que um escritor que não entende nada de política e erra em todos os prognósticos econômicos continue a ser o influente intelectual público da América Latina. Não deve ser à toa que a região tenha se afundado na mais completa irrelevância no cenário global das últimas décadas. Junte-se a isso um outro mistério: a reputação de grande romancista de uma obra que, na prática, se encerrou 50 anos atrás e desde então se situa no plano mediano dos best-sellers, nas prateleiras de bancas de aeroportos.
Fazedor de histórias
A reputação de grande escritor se deve aos três primeiros romances: “A Cidade e os Cachorros” (1963), “A Casa Verde” (1966) e “Conversas na Catedral” (1969). Nestes livros, apareceu um autor afinado com as mais modernas técnicas narrativas da época para mergulhar no seu espaço preferencial, o Peru de meados do século 20. Do ambiente escolar sinistro em Lima ao universo da selva peruana, uma multiplicidade de vozes brota das primeiras narrativas de Vargas Llosa.
As frases iniciais de “Conversas na Catedral” ainda são o diagnóstico mais preciso e ácido de um continente inteiro, em qualquer cultura da região: “Da porta do ‘La Cronica’ Santiago observa a avenida Tacna, sem amor: carros, edifícios desiguais e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos flutuando na neblina, o meio-dia cinzento. Em que momento o Peru tinha se fodido?”. A desilusão do personagem serve de filtro para enxergar a situação de uma rua, uma cidade e um país.
No calor da hora, a escrita de Vargas Llosa chamou atenção do crítico Antonio Candido, um leitor do que se fazia de melhor no mundo inteiro e principalmente na América Latina dos turbulentos anos 1960. Para o brasileiro, o romancista peruano transformou em “coisa também sua” as descobertas narrativas de autores como Marcel Proust, James Joyce, Dorothy Richardson, Virginia Woolf, Alfred Döblin e William Faulkner. Candido vê a novidade criativa de “A Cidade e os Cachorros”:
“Um exemplo admirável em ‘La Ciudad y los Perros’: o do personagem não identificado que vai deixando o leitor perplexo, pois se cruza com a voz do narrador na terceira pessoa e com o monólogo de outros personagens conhecidos, podendo confundir-se alternativamente com eles; e que no fim, ao manifestar-se como Jaguar, ilumina retrospectivamente a estrutura do livro, à maneira de um rastilho, promovendo a revisão de tudo que estabelecêramos sobre os personagens. Esta técnica parece uma concretização da imagem que Proust usa para sugerir a sua (a figura japonesa se desdobrando na água da tigela); mas significa algo muito diverso, num plano diverso de realidade”.
Em seguida, Candido situa a importância de Vargas Llosa na produção mais ampla do continente e do mundo: “O romancista do país subdesenvolvido recebeu ingredientes que lhe vêm por empréstimo cultural dos países de que costumamos receber as fórmulas literárias. Mas ajustou-as em profundidade ao seu desígnio, para representar problemas do seu próprio país, compondo uma fórmula peculiar: Não há imitação nem reprodução mecânica. Há participação nos recursos que se tornaram bem comum através do estado de dependência, contribuindo para fazer deste uma interdependência”.
Criador de best-sellers
O declínio progressivo de Vargas Llosa ficcionista vem da década de 1970. Romances como “Tio Julia e o Escrevinhador” e “Pantaleão e as Visitadoras” são obras de entretenimento, cômicas, e que se lê com prazer. Em seguida, no entanto, veio a sinalização de que as coisas desandavam, a partir de “Guerra do Fim do Mundo”. Como notou Jean Franco, decana dos estudos latino-americanos, ele teve o desatino de criar uma crítica pesada às guerrilhas de esquerda, justamente na fase sanguinária das ditaduras sul-americanas.
O que se nota desde os anos 1980 é o surgimento de criador em série de best-sellers, conjugado à figura do defensor de um liberalismo vulgar — assim como se dizia existir um “marxismo vulgar” no lado da esquerda da época. Livros como “A Festa do Bode” criticam os populismos históricos, caudilhos, ditaduras, mas Vargas Llosa se silencia para a degradação contemporânea da América do Sul, em termo político, econômico, social e cultural. O escritor peruano parece mais preocupado com a doutrinação liberal.
Obras como “Travessuras da Menina Má” e “Cinco Esquinas” mostram a habilidade de prender o leitor em narrativas simples e, na verdade, convencionais. Ficou no passado o autor dos três primeiros romances complexos. O chamariz de hoje está nas travessuras do articulista de imprensa, capaz de defender atrocidades em nome dos liberais. O feiticeiro do livre mercado, porém, corre o risco de isolamento, uma vez que os conservadores estão virando antiliberais e sonham, acima de tudo, com pátrias-cristãs.