Filme com Charlize Theron, na Netflix, não vai te deixar piscar

Filme com Charlize Theron, na Netflix, não vai te deixar piscar

Parece ser consenso que à medida que se dão por findas eras marcadas por pesar e sacrifício, inicia-se uma nova fase de certo alívio para que, uma vez mais, se anuncie um tempo de desesperança, instabilidade, medo, toda sorte de maus sentimentos recolhidos, e o ciclo recomeça, finalmente. A vida é uma batalha, diária e contínua, como sabe qualquer um que se digna a viver dos frutos do seu trabalho, resolução mais acertada e mais perigosa que alguém pode tomar, e tanto pior se se considera que deve ser a única. Somos lançados num picadeiro repleto de feras, como faziam na Roma Antiga em espetáculos que amalgamavam o patético e o monstruoso, protagonizados por homens revestidos de uma aura cinicamente heroica. Heroísmo nenhum pode ser autêntico quando se precisa incorporar um espírito de combate perene, que se prolonga ad aeternum por uma existência sem coisa alguma que a faça valer a pena e que a eleve à condição de vida propriamente. Pode até soar como um sensacionalismo barato e fora de lugar, mas esse cenário de dificuldades extremas, que se avultam e nos fazem lutadores involuntários numa arena onde se está para matar ou para morrer, se erige agora, valendo-se das medidas e desmedidas de cada uma de nossas atitudes, as mesmas que hão de nos levar a um futuro decerto muito menos róseo que este já triste presente que nos cerca.

Os mistérios que não revelamos nem para nós mesmos nos transportam para um tempo em indivíduos somos tomados pela necessidade de contar com heróis e heroínas que tenham o condão de salvar-nos, uma vez que nos descobrimos vítimas do enredo diabólico que escrevemos agora, cujo desfecho não pode ser feliz. Apelando a narrativas fantasiosas, mas também precisas, em que as incertezas quanto ao destino trevoso da humanidade surgem em elucubrações filosóficas materializadas por sequências de apuro estético impecável, as ficções científicas conseguem alcançar em nós um lugar que relegamos ao esquecimento — até porque impõem-se necessidades muito mais urgentes, como ganhar a vida. Com “Aeon Flux — Operação Terminus” (2005), Karyn Kusama chega a essa fase pouco iluminada que o homem guarda só para si, tentando despertar as consciências para os alertas cuja importância todos já conhecemos de há muito. Vitaminando a série de curtas de animação exibidos na “Liquid Television”, sessão da finada MTV, em 1991, a diretora revive um fandom poderoso, que volta arrebatando o interesse de novas plateias.

O roteiro de Phil Hay e Matt Manfredi não reinventa a roda. Em 2415, apenas 1% da população da mundial segue viva depois que da eclosão de um vírus desconhecido quatrocentos anos antes, em 2011. Toda essa gente se acotovela em Bregna, a última cidade da Terra, cercada de muralhas que a fazem ainda mais distópica, grande trunfo da equipe de desenho de produção comandada por Andrew McAlpine. Para que se feche esse arco das ilusões perdidas, há que se mencionar Trevor e Oren Goodchild, os tiranos que governam esse éden decaído submetendo seus comandados a dias de opróbrio e supressão de qualquer chance de liberdade, boas performances de Marton Csokas e Jonny Lee Miller.

Aqui, Charlize Theron aparece na pele de outra de suas guerreiras imortais, a exemplo de Andy em “The Old Guard” (2020), de Gina Prince-Bythewood, mas Kusama faz recrudescer o drama da narrativa ao conferir a sua personagem-título a missão de derrotar os Monicanos, uma legião de rebeldes anônimos que, liderados por Handler, de Frances McDormand, lhe tiraram o que poderia ter de mais precioso. É justamente essa a subtrama que passa a dar liga a todo o resto da história e toma a frente do enredo, num movimento diametralmente oposto ao que Theron executa, retirando-se do proscênio para que tipos secundários como a bizarra Sithandra, vivida pela ótima Sophie Okonedo, roubem a cena.


Filme: Aeon Flux — Operação Terminus
Direção: Karyn Kusama
Ano: 2005
Gêneros: Ficção científica/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.