— Ué… A irmã Rosa morreu?
— Morreu.
— Que dia?
— Faz uma semana.
— E eu chorei?
— Chorou?
— Muito?
— Muito.
— Rá! Fui mais esperta do que a Rosa. Sou mais velha que ela e continuo viva. Eu enganei a morte.
Todas gargalharam, a enganarem a senhora da foice por mais um dia. Até mesmo Violeta, a freira surda, entrou na onda, deu o seu máximo e sorriu como se fosse a Gioconda de Da Vinci. Não havia nenhum mistério: àquela altura da vida, ria-se de qualquer coisa, principalmente de si mesmo.
As senhoras eram estacionadas, diariamente, sob o sol fresco da manhã. Carecia alimentar os ossos com luz. Ansiosa em devorá-las, só a terra sofria com o complexo de inferioridade por causa daquelas resenhas intermináveis, repetitivas, demenciais. Ela tinha uma fome-pressa de mastigar gente.
— Ora e essa! Esse asilo só tem gente velha! — alguém esbravejou tamanha obviedade, após engolir uma cápsula de desfastio do tamanho de uma pilha alcalina calibre AAA. Poderia ter sido pior. Poderia ter sido um supositório de maxixe preenchido com mil miligramas de melodramas.
— Tô cagando e andando pra minha família… — reclamou Margarida, uma franciscana boca-suja, aquela mesmo que, desde que fora acometida pela temível moléstia de Al, vivia a arrancar as roupas, a dizer tudo o que pensava — ou achava que pensava —, a repetir que ia se casar, pois nunca quis mesmo servir ao Vaticano. Desta feita, ninguém riu do surto herético, muito menos, Violeta, que nada escutava — ria sob o efeito manada — conforme eu já lhes disse antes.
Enquanto esvaziava um coletor de lágrimas lotado até o gargalo, uma enfermeira piscou para a outra. Não. Infelizmente, elas não eram lésbicas. Eu também me amarro em fantasias eróticas envolvendo mulheres metidas em aventaizinhos brancos, mas, ali, definitivamente, não era o caso. Enfermeiras são criaturas danadas, abnegadas. Tenho por elas o maior respeito, principalmente quando vêm armadas com sondas, dragas e seringas. Supõe-se que o céu esteja coalhado delas, mais do que crianças mortas de diarreia e fome. Pois, então: era como se as duas jogassem carteado. Aquela equipe entendia-se como só. Chamo isso não de transa, mas, entrosamento. Que alguém trouxesse logo mais uma dose cavalar do amargoso elixir de sossega-leão para aplacar a ira daquela tigresa amargurada aos 98 anos e que escoiceava sem rodeios.
— Queria tanto tomar uma Malzbier, Madre Superiora… — umazinha comentou, sentindo-se diminuída demais, sóbria demais.
— O que é Malzbier?
— Cerveja preta e doce.
— Mas você tem diabetes, irmã Amarilis.
— Você tem razão. Mas é gostoso. Depois da eucaristia, depois de pregar a palavra nos tímpanos da gente com araldite trazida da terra santa, o Padre Cravo me disse que cerveja preta é melhor do que sangue-de-cristo on the cross.
— On the rocks, você quer dizer.
— Isso mesmo, irmã. Obrigado por me corrigir: on the cross. De tão bom, arranca os pregos da mente da gente. Deixa-nos mais soltas, sabe como é?
— Mais soltos que os meus intestinos, impossível.
Gargalhadas ecoaram na casa paroquial. Ciscos nos olhos. Sabidas, as enfermeiras piscaram entre si.
— Ué… A irmã Rosa morreu? — aquela ladainha já estava enchendo o saco, até mesmo de um sapo pulverizado com sal, que a tudo assistia contrariado, calado e frio. Quem judiara do feioso anfíbio, ainda mais dentro de um antro religioso repleto de idôneas e envelhecidas criaturas?
Uma cuidadora novata, cheia de paciência e viço, bonita que só vendo, mais adorável que a chuva suave quando cai na relva, explicou, pela enésima vez que, sim, a irmã Rosa tinha morrido, já tinha uma semana, de causas naturais, de velhice, de preguiça do coração em continuar batendo sem reconhecimento nem placa. Foi encontrada morta perto da horta — “Infausto fumegante da aorta”, palpitou o jardineiro enxerido que podava uma moita de corações-sangrentos — onde gostava que a colocassem todas as tardes, a não ser que o céu estivesse nublado — banho de chuva, todo mundo sabe, provoca pneumonia e excesso de esperança —, para que ela ouvisse os passarinhos rirem dos seres humanos, para que ela acompanhasse com seu par de olhinhos tristes — que a risonha terra haveria de comer — a marcha decidida das formigas nas costelas dos canteiros, para que ela sentisse na pele-pergaminho do seu rosto todo o plausível carinho da brisa, uma das raras demonstrações de afeto que ainda lhe restavam sobre a face da terra.