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Num tempo em que ser mulher era, antes de qualquer outra coisa, assumir-se um mero apêndice — primeiro dos pais ou dos irmãos; depois do marido ou da Igreja — ou dar a cara à tapa (e isso muitas vezes não era só figura de linguagem) e fugir com o circo (idem), vozes que se levantam em defesa da ideia, absurda até outro dia — e ainda execrada em diversas sociedades ao redor do mundo hoje —, de que mulheres podem, e mesmo devem, buscar igualar-se ao homem, mantendo ou não suas idiossincrasias femininas, geravam muito mais calor que luz, por maior que fosse a sensatez e a obviedade da argumentação. Enfrentando as vozes reacionárias que sempre entenderam que a dita elite deve se insurgir contra qualquer movimento que sinalize para mudanças, negativas a despeito do ponto de vista sob o qual sejam tomadas em análise, intelectuais como a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) deram colaborações inestimáveis para o fortalecimento da causa da mulher. Trabalhos a exemplo de “O Segundo Sexo”, lançado em 1949, e “A Mulher Desiludida” de 1967, versaram sobre os desafios de ser mulher num mundo de homens, ou sob a forma de ensaios e elaborações retóricas, como no primeiro, ou a partir de histórias curtas em que personagens femininas despojam-se de vaidades ao dividir com o leitor as agruras de casamentos infelizes. Tudo isso parece delírio frente às profundas transformações protagonizadas por mulheres ao redor do mundo, mas só elas sabem o que já passaram — e passam ainda. Um trabalho intermediário, contudo, foi o responsável por catapultar a obra de Beauvoir à categoria de leitura obrigatória, e não só para o público iniciado. Em “Memórias de Uma Moça Bem-Comportada” (1958), a autora destrincha muito das dificuldades que ela, filha de uma família de classe média, sempre encalacrada, e sem relações sociais relevantes, deu a volta por cima e teve a vida que quis, socorrendo-se, nesta ordem, da literatura, primeiro reduto de almas obsessas; da filosofia, tentativa de elaboração e refinamento dessas primeiras impressões salvíficas paridas pela literatura; e às novas amizades, a tal má conduta a que alude com ironia o título, mormente em se tratando de mulheres, e pior, de mulheres jovens, que deveriam interessar-se por matérias mais palpáveis, comezinhas e, a depender do estágio da vida em que se encontrasse, a diferença entre comer e dormir sob a proteção de um teto e mendigar ou se prostituir. A força da verve da escritora era tão absorvente que teve de dar sequência a esses relatos — cortantemente íntimos, diretos, fesceninos, muitas vezes — em outros quatro volumes, “A Força da Idade” (1960), “A Força das Coisas” (1963), “Uma Morte Suave” (1964) e “Tudo Dito e Feito” (1972), que coroa essa antologia autobiográfica de uma mulher nada comum.

Mulheres sempre trabalharam — as mulheres sem pais ou maridos que as respaldassem financeiramente, em especial —, mas sempre houve aquelas que iam mais longe e, além de levar adiante o pleito de serem donas de seu próprio corpo e de suas vontades, teimavam em querer assumir os postos destinados aos homens, para os quais estavam se preparando desde o princípio dos tempos. Se na era pós-moderna não há nada mais corriqueiro que verificar que por trás de megacorporações, do comércio varejista aos bancos públicos, existe um par de sapatos de salto alto, batom e terninhos de grife adornando inteligências privilegiadas, às mulheres de fins do século 19 que chegaram lá foi necessário boa dose de sacrifício e uma apurada inclinação para a disputa, porque se sabiam em franca desvantagem quanto a seus rivais do sexo oposto.

Sherlock Holmes continua a ser o detetive mais célebre da ficção, mas a partir de 2006 ganhou uma adversária à altura, não obstante a concorrência ter permanecido em casa. As primeiras histórias protagonizadas por Sherlock Holmes começaram a ser publicadas em 1887, e incontinente o britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930) tornou-se um dos escritores mais incensados de seu tempo. A americana Nancy Springer percebeu uma certa misoginia nos contos de Conan Doyle — e uma excelente oportunidade de estabelecer-se num filão lucrativo ainda por ser explorado — e tirou da manga o contraponto perfeito à empáfia cativante de Sherlock, sinônimo de histórias de suspense meio farsescas, mas sempre bem escritas, em que um crime pleno de enigmas resta por ser elucidado. Enola, a irmã mais nova do decano da investigação particular mundial, continua seu périplo pelos becos enlameados de uma Londres nada encantadora, de tipos cheios de contas a acertar com a justiça. “Enola Holmes 2” (2022) projeta a heroína de Springer para uma nova fase, em que se vê obrigada a encarar situações mais desafiadoras se quiser mesmo fazer sombra ao prestígio do irmão.

O roteiro do diretor, Harry Bradbeer, escrito em parceria com Jack Thorne, se esmera por cristalizar a figura da mocinha, apresentada ao cinema por Bradbeer em 2020, com texto solo de Thorne, como uma personagem capaz de merecer uma franquia para chamar de sua depois dos sete livros de Springer (e contando). Já nas primeiras cenas, Millie Bobby Brown deixa muito claro quem é a estrela aqui, o que, convenhamos, não é tão difícil frente à atuação quase mecânica de Henry Cavill, o primogênito dos Holmes — ainda que eu seja forçado a reconhecer que sua posição não é das mais confortáveis (parece que ele tem feito umas escolhas meio equivocadas ultimamente…). Enola está numa quadra tensa de sua incipiente carreira: decidiu encampar a atividade detetivesca, para a qual tem, sim, alguma vocação — e o desempenho de Brown faz com que o espectador compre a ideia —, mas, por óbvio, esbarra em obstáculos de maior ou menor importância, e o gênero feminino, como se nota, está na segunda categoria. Muito antes, se impõem a tenra idade (a atriz tem dezoito anos; a personagem, ainda menos) e o fardo do parentesco; contudo, lhe cai no colo o caso, entre banal e assombrosamente intrincado, do sumiço de Sarah Chapman, a irmã de Bessie, de Serrana Su-Ling Bliss, operária numa fábrica de caixas de fósforo.

O enredo, misteriosamente, perde muito do empuxo inicial quando da opção por se aprofundar em detalhes do expediente da fábrica, palco de uma revolta trabalhista real liderada por Chapman, quando poderia centrar fogo nos personagens secundários, com destaque para a Mira Troy, ou Moriarty, de Sharon Duncan-Brewster, excelente na reviravolta final. Beauvoir certamente teria orgulho dessas duas moças rebeldes, ainda que uma delas não acabe bem.


Filme: Enola Holmes 2
Direção: Harry Bradbeer
Ano: 2022
Gêneros: Mistério/Crime/Aventura
Nota: 8/10