O gênero humano está sempre precisando de quem o salve, eis a sua desgraça — e a sua redenção. Lutando contra suas tantas fraquezas, o homem se depara com a evidência de que compreender o outro, emanar uma palavra de incentivo, um sorriso franco, desarmado, sem sobrossos, sem receio de ser tachado de doido, dirigir ao próximo um olhar de bondade, de empatia que seja, muitas vezes exige-lhe tamanho sacrifício que é como se fizéssemos mesmo uma longa viagem para aquela vida, na qual as circunstâncias que consideramos as mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro. Daí ser tão complexa a vida de cada criatura sobre a Terra, porque envolta numa pletora de questões, oculta sob um manto de problemas, dos quais só somos capazes de nos livrarmos na medida em que acessamos o mais obscuro de nosso espírito. Ao cabo dessa experiência, simples apenas na superfície, é que tomamos alguma consciência sobre nós mesmos e do papel que representamos em nossas próprias vidas. Só então, estamos aptos a mensurar a possível relevância que teríamos na história daqueles que nos rodeiam.
Aprendemos ainda em tenra idade que o diabo nunca é tão feio quanto se pinta. Manifestações do mal rondam a existência humana sob as formas mais insuspeitas, são muitas vezes até contraditoriamente belas, e justamente por essa razão inspiram uma delicadeza rara, de que poucos são capazes, e acendem em nós o instinto de preservação mais básico, que surge ninguém sabe ao certo como nem de onde, mas que acaba por nos servir muito mais que somente um protetor: torna-se um guia poderoso, de que nos valemos em todas as circunstâncias onde o risco se mostra imperioso. “O Colecionador de Ossos” (1999) pode ser encarado sob perspectivas as mais inusitadas, quiçá delirantes, mas sempre oportunas. Phillip Noyce, definitivamente, não dirige uma história comum; cheio de subtramas, o filme desdobra as vidas de dois personagens marcados por tragédias que se veem unidos em torno da elucidação de um mistério tão sombrio quanto instigante.
O roteiro de Jeremy Iacone desenvolve o mote central do enredo, mas o que se tem inequivocamente claro é que aposta mesmo é na força de seus protagonistas e nutre por eles um xodó legítimo, a ponto de fomentar também no espectador esse sentimento. E não é para menos: por trás deles estão dois dos atores mais queridos de Hollywood, conhecidos pela facilidade para transferir aos tipos que encarnam o carisma que ostentam, em quadro e fora dele. Denzel Washington e Angelina Jolie materializam uma química de que se poderia duvidar em boa medida, por uma série de razões — nunca haviam trabalhado juntos antes; ele era já um veterano, e Jolie, apesar de ser então razoavelmente conhecida por produções quase malditas, ainda que sublimes, como “Gia — Fama e Destruição” (1998), dirigido por Michael Cristofer, só foi se cacifar como intérprete em “Garota, Interrompida” (1999), de James Mangold. Washington, como sempre acontece, absorve a essência de seu personagem incontinente, e malgrado esteja sempre no mesmo cenário, devido a um evento funesto ilustrado por um flash em corte seco, faz de seu Lincoln Rhyme a graça da história, até que Jolie desponta no pedaço. Os dois são policiais, mas Noyce vai fornecendo a quem assiste os elementos que levam à conclusão óbvia de que não orbitam exatamente o mesmo universo. Pouco depois, o diretor torna ainda mais explícito o motivo de terem se encontrado: Rhyme, um dos mais conceituados peritos forenses dos Estados Unidos, é requisitado pela polícia para elucidar o crime sugerido no título. Amelia Donaghy, a patrulheira vivida por Jolie, é forçada a deixar o grupamento voltado à prevenção de delitos envolvendo menores — existe aí foco para uma estimulante discussão sobre chefes abusivos e subalternos frustrados — e se afinar com esse parceiro improvável. Até que sua relação vai se estreitando mais do que poderiam supor.
Para muito além da narrativa do thriller policial característico, “O Colecionador de Ossos” interessa pela forma com que Noyce elabora as sutilezas de um romance que jamais se consuma, pontuado pelo olhar angustiado que Rhyme tem sobre a própria vida, fardo de que tenta se livrar algumas vezes. No encerramento, a cena de festa natalina em que comparece, com Amelia, dá a entender que aquele seria, afinal, o começo de uma bela amizade. Sua agonia chega então a um merecido fim.
Filme: O Colecionador de Ossos
Direção: Phillip Noyce
Ano: 1999
Gêneros: Thriller/Drama/Ação
Nota: 8/10