Suspense cibernético que acaba de chegar à Netflix não te deixará piscar por 90 minutos Mark De Blok / Netflix

Suspense cibernético que acaba de chegar à Netflix não te deixará piscar por 90 minutos

Em 1969, um experimento militar que visava ao compartilhamento seguro de dados em tempo real foi tomando corpo, sendo aprimorado, testado à exaustão, até ficar no ponto para invadir o cotidiano de 99% dos habitantes do globo, independentemente da classe social a que pertençam, da cor de sua pele, da fé que professam. A internet nasceu à luz de um sonho, que foi de pouco em pouco assumindo sua natureza imperfeita na medida em que, hoje, somente 60% da população mundial dispõem de um ponto de conexão eficiente em casa, conduzindo-nos à conclusão óbvia de que a inteligência artificial, em sua constituição mais rudimentar, não é assim tão acessível. À medida que inventava demandas e criava novas necessidades para a vida pós-moderna que ia descobrindo, o homem foi forçado a desenvolver também novos jeitos de sanar os problemas que ele próprio fazia aparecer. Desse modo, surgiam objetos, mecanismos, programas, dispositivos antes completamente alheios ao dia a dia do cidadão comum. Todo esse aparato, capaz de expandir a realidade e mesmo transformá-la, possibilitou ao indivíduo viver situações com que jamais sonhou, numa espécie de prolongamento de sua consciência, e adquiriu o status de eletrodomésticos para o uso cotidiano, tão banais se tornaram. A partir de então, tudo o que a velha musa cantava tinha de cessar, para que novos anseios fossem alimentados, supríssemos novas carências e nos entulhássemos de outras parafernálias.

O homem pós-moderno, como Matusalém, o vetusto personagem do “Gênesis” que teria vivido 969 anos, sempre reivindicou sua cota de eternidade. E não é preciso ir longe para ratificá-lo, dado o caráter simples de instrumentos que nos auxiliam a burlar a imposição do envelhecimento e, destarte, do término da vida — em proporção maior ou menor —, como cadeiras de rodas, próteses ósseas, óculos de grau, tintas de cabelo. Sempre insatisfeito, sempre desejando, sempre buscando o que não pode ter, o homem acaba conseguindo realizar seu sonho profano de emular a onipotência divina, e muito dessa sua superioridade passa por seu poder de driblar o fim mediante a criação e o refinamento das tralhas eletrônicas que o catapultam para uma eternidade enfarosa e sem sentido.

A vontade de marcar sua história com um feito memorável, digno de figurar nas páginas dos jornais e inspirar outras pessoas, arrasta para um torvelinho de problemas uma garota que se aproveita da intimidade promíscua com o mundo cibernético para tentar melhorar a vida como ela é, a começar pela sua própria. A diretora holandesa Annemarie van de Mond usa sua protagonista em “Hackers no Controle” (2022) a fim de transmitir uma mensagem complexa, dúbia, que replica estereótipos ao passo que também aponta ideias a que ninguém havia dado importância até então. Na pele de Mel Bandison, Holly Mae Brood encarna muitos dos receios da sociedade híbrida do nosso tempo, parte fundada na tecnologia e na inteligência artificial, parte ainda preferindo o bom e velho olho no olho, inquestionavelmente o método mais seguro para se trabalhar certas relações e administrar os problemas que delas decorrem.

O texto delirante de Tijs van Marle a partir do argumento de Hans Erik Kraan atribui a Mel poderes quase sobrenaturais, graças a sua facilidade com algoritmos e a técnica com que derruba servidores de internet ao redor do mundo. Nesse ponto, Mond refina a aura de anti-heroína de sua personagem central adicionando elementos pontuais como sugerir que sua inclinação para condutas marginais prestam-se sempre ao bem, ideia afinal sacramentada no desfecho, quando Buddy Benschop, o invasor mais velho e bonachão vivido por Frank Lammers volta num arquivo na nuvem para tranquilizar a personagem de Brood quanto ao futuro. A figura de Buddy cresce muito mais que o esperado, a despeito de suas aparições bissextas, e a diretora acerta em cheio ao escalar um ator que passa longe do phisique du rôle do hacker como se convencionou imaginá-los, comentário que Thomas Deen, o amigo que está sempre à ronda de algum sentimento mais cálido, explicita. Uma vez que a mocinha cumpre seu destino, embaralhando as atividades criminosas de uma megacorporação com vínculos com a China, o arco dramático desses três personagens fecha-se abruptamente e a condução do filme arrasta-se um pouco, voltando à carga com um evento relacionado à grande aposta da empresa hackeada por Mel, que vira o alvo incansável de gângsteres de toda a parte, mas, claro, são engolidos pela astúcia da garota. Como convém a uma trama assim.


Filme: Hackers no Controle
Direção: Annemarie van de Mond
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.