Faça um favor a si mesmo, tire 109 minutos do seu tempo e assista a esse filme encantador  na Netflix 

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Com alguma frequência, se faz necessário deixarmos as muitas comodidades da vida pós-moderna e nos voltarmos para o que pode haver de mais trivial na essência de cada um. Essa tarefa é levada a cabo, quase sempre, com boa medida de sacrifício, de dor até, uma vez que todos aqueles aparelhos e dispositivos que terminam por nos encarcerar em casa chegam a se tornar uma extensão de nossos corpos sedentários, que convenientemente silenciam diante de telas gigantescas, sofás majestosos, comida farta, saborosa e pouco saudável à mão. Enquanto essas urgências puderem ser devidamente supridas, nada a temer, malgrado o espírito, junto com o corpo, vá se ressentindo, vá se revolvendo, vá se deixando tomar pela doença, até o momento em que resta pouco a ser feito além de se arvorar em verdadeiro dono dos próprios desejos e ter a coragem de tomar outro rumo. Essa viagem para dentro da própria natureza, único lugar em que se ouve o rugido das feras que em nós vivem, tem seus lances atordoadores, mormente no começo, mas se feita com boa vontade, se vista como uma profissão de fé em si mesmo, de crença de que nossos medos podem, sim, ser nossa força vital e transformadora, o mundo aqui fora passa a ser, também, uma outra terra.

À medida que se vive, menos se entende o real propósito que nos move, para que seguimos tentando, por que a vida toma essa ou aquela direção. A nós, só nos cabe continuar, atravessar a selva funda que há no coração de cada um e dar o nosso máximo quanto a compreender o estar no mundo como uma experiência que pode se pautar pelo inusitado, mesmo pelo tétrico, mas que tem, sim, algum fundamento. Quando o homem é capaz de integrar-se de todo a seu lado mais inculto, pode também derrubar as fronteiras geofísicas e políticas, a mitologia, a história e quiçá o próprio tempo, provando-se a criatura mais poderosa que existe. Jean-Jacques Annaud parte de uma fábula com protagonistas que são puro sentimento a fim de falar à racionalidade de seu público. Alegoria sobre a fantasia e a dureza da vida, “Era Uma Vez Dois Irmãos” (2004) lida com emoções as mais ingênuas, que afloram graças à dupla de que ancora o filme.

Kumal e Sangha são os irmãos a que se refere o título da história, um roteiro de Annaud, Alain Godard (1944-2012) e Julian Felowes. Esses filhotes de tigre têm tudo para ser os novos senhores das florestas da Indochina, então colônia francesa, nos anos 1920, quando o turismo predatório, definido por safáris, de onde saíam as peles dos animais ferozes e o marfim dos elefantes, e a dilapidação de relíquias. O diretor transmite bem esse espírito, com uma sequência no introito na qual se assiste a um leilão, em que um imenso par de dentes de um paquiderme menos afortunado encalha, ou seja, a caça não visava sequer ao incremento da economia, dava-se sem planejamento de nenhuma ordem e à revelia do protesto dos poucos que se interessavam pela vida silvestre. Pouco depois, a narrativa salta para um mutismo algo incômodo, bem pior que o dos documentários da “National Geographic”, que se presta a apresentar os adoráveis (e perigosos) personagens centrais, ainda que, por óbvio, só caibam aqui as boas referências. Ao longo de todo o segundo ato, Kumal e Sangha, “interpretados” por um plantel de feras adestradas, deslizam com a elegância felina típica pelas veredas ensolaradas da floresta, cujo brilho a fotografia de Jean-Marie Dreujou destaca bem. Mas os dois tigrezinhos não poderiam ser felizes nesse paraíso mais e mais devassado, pelos forasteiros e pelos nativos, e lhes colhe a desdita que dá azo aos desdobramentos ditos sérios do enredo.

Findo esse segmento, emergem com mais força os personagens humanos, capitaneados por Aidan McRory, o salvador branco e caçador arrependido interpretado por Guy Pearce, que se afeiçoa a Kumal, aprisionado no circo de Zerbino, de Vincent Scarito. O andamento da história torna-se um tanto frenético a fim de dar conta das inúmeras subtramas — não se entende muito bem por que Sangha tem a sorte que o trio de roteiristas lhes reserva, nem como os dois tigres voltam a se encontrar no desfecho. Em excetuando-se essas cobranças por razoabilidade num conto eminentemente fantástico, que vira e mexe vai parar nas Sessões da Tarde de emissoras variadas, “Era Uma Vez Dois Irmãos” é uma beleza, um filme menor, mas cheio de pulso, do oscarizado Annaud.


Filme: Era Uma Vez Dois Irmãos
Direção: Jean-Jacques Annaud
Ano: 2004
Gêneros: Fantasia/Drama/Aventura/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.