2022: Democracia derrota projeto autoritário, no Brasil

2022: Democracia derrota projeto autoritário, no Brasil

2022 será lembrado pelos livros de história como ano da consolidação da democracia brasileira. É uma aposta. Certamente essa consolidação, inteiramente obra da sociedade civil, vem ocorrendo por etapas. Assim, em 1988 tivemos a Constituição “cidadã”, seguida do restabelecimento das eleições diretas para presidente da República, ocorridas a partir em 1989.

De lá para cá, 33 anos, houve graves turbulências instituições, sendo que num curto espaço de apenas três décadas dois presidentes sofreram impeachment: Fernando Collor (PRN) em 1992, e Dilma Rousseff (PT) em 2016. No caso de Dilma, ainda será debatido se impedimento justo ou injusto, uma vez que as condições políticas permitem especular a hipótese de golpe branco. O papel desempenhado pela liderança do Congresso — Eduardo Cunha (PMDB) naquela ocasião; Rodrigo Maia (Democratas) e Arthur Lira (Progressistas) na Era Bolsonaro — foi determinante para a sorte do mandatário. E quem sabe, no caso mais recente, para a desgraça da população. Literalmente: cálculos oficiais (USP/Uerj) dão conta de que, apenas na pandemia de covid-19, morreram 300 mil brasileiros em consequência da condução temerária da crise sanitária, por parte das autoridades federais. Somente o atraso de 45 dias na compra de vacinas teria custado a vida de 90 mil brasileiros, o grande escândalo da Era Bolsonaro, ao lado do Orçamento Secreto. O crime de lesa-humanidade nunca foi considerado, embora falas do líder do governo Ricardo Barros (PP), do deputado Osmar Terra (MDB) e do próprio presidente da República confirmem intenção deliberada de provocar “imunidade de rebanho”, por contaminação populacional.

De comportamento irresponsável, destrambelhado e vulgar, Jair Bolsonaro maculou como nenhum de seus antecessores a dignidade da Presidência. Personalidade delirante ou simplesmente hábil manipulador (psiquiatras renomados como Guido Palomba e Christian Dunker já se manifestaram sobre “o caso”), Bolsonaro foi alvo de 145 pedidos de impeachment impetrados pela sociedade e partidos políticos, nenhum dos quais logrou êxito. O motivo oculto parece ter sido a entrega do orçamento federal para o parlamento, em troca de sustentação política ante o agravamento do Caso Queiroz, misto de salvaguarda e cooptação. A nação, porém, estaria exausta em função da “instabilidade” que prejudica “a economia e os investimentos”, argumento público para o Congresso sustentar Bolsonaro no poder, apesar de sua notável inépcia para o cargo e comportamento reiteradamente escabroso. É bastante sintomático que o Brasil detinha, em 2022, 2,7% da população mundial, mas tenha respondido por mais de 13% das mortes mundiais causadas por covid-19 (Universidade Federal de Pelotas). Morreu-se mais de covid, também, naqueles municípios em que os “patriotas” acreditaram nas orientações do presidente da República. (Revista Lancet, 2018) Sabemos, no entanto, que não é a lei que derruba presidentes, e sim a inclinação dos “aliados”.

Chegou-se a falar em necropolítica para definir o comportamento das autoridades federais, em especial de Jair Bolsonaro — violador contumaz das normas sanitárias recomendadas por seu próprio ministério da saúde — após, claro, forte pressão da comunidade médica. Mas o escândalo dessas milhares de mortes não impressionou uma parcela da sociedade — autodeclarada “cristã” — nem impressionou as instituições quanto o crime de roubo, vinculado a governos petistas. Apesar das graves conclusões da CPI da Covid, desta feita não o Congresso, e sim a Procuradoria Geral da República cuidou de arquivar todas as acusações. E ninguém foi punido sequer por prevaricação e negligência. Em flagrante contradição com o ministério de Jesus — que se inicia com a cura dos doentes (Mateus 14, 23) e é comprometido com a vida (“Eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância”, Jo, 10,10) —, o direito à vida foi claramente violado pelo governo Bolsonaro, apesar de sua retórica antiabortista. O seletivismo em matéria de valores cristãos foi a tônica deste governo, que em nome da família e da concepção desconsiderou todos os outros mandamentos, como a misericórdia e a mansidão.

Se quiserem, historiadores futuros terão plenas condições de estudar a Era Bolsonaro em quatro capítulos: 1) ódio, 2) negacionismo, 2) mentira e 4) autoritarismo. De conhecimento público, esses temas estão cristalizados numa enxurrada de reportagens jornalísticas e opiniões dos mais diversos segmentos, em documentos oficiais e até em vídeos do presidente. Todos conhecem as convicções de Jair Bolsonaro, que sempre defendeu a ditadura militar e a tortura como métodos de ação política. Mesmo vitorioso, sua retórica “antissistema” — o que é curioso, porque seus vínculos políticos tornam-no visceralmente sistêmico, desde sempre — essa retórica inflamou o país dia a dia, durante todo o seu mandato. Facções das forças armadas parecem não ter favorecido um auto-golpe menos por afinidades ideológicas com o ex-capitão do que por falta de condições objetivas para isso, sejam internas ou externas. Assim, toda a argumentação do presidente de “jogar dentro das quatro linhas da Constituição” refletiu menos respeito às regras do que seu isolamento e fraqueza, visto que não é um democrata de cepa. Bolsonaro testou a sociedade civil e as instituições da República até o limite, e foi a resistência de ambas durante quatro anos que garantiu a continuidade da democracia em nosso país.

Se é verdade que nem o Congresso Nacional nem a Procuradoria Geral da República foram particularmente responsáveis por isso, também é verdade que o Supremo Tribunal Federal constituiu-se na principal defesa da Constituição. Com atuação inevitavelmente polêmica, certos setores alinhados ao presidente acusaram-no de ativismo judicial — acusação que, em conjuntura diversa, partira da principal oposição ao bolsonarismo: o lulo-petismo. A história também julgará os possíveis excessos em relação ao comportamento dos juízes da Suprema Corte. Sejam quais forem esses excessos, e apesar da defesa intransigente da “liberdade” pelo presidente — desculpa para travestir fake news de “opinião” contra a ordem constitucional e institucional —, o bolsonarismo caracteriza a principal recaída autoritária da sociedade brasileira, desde os anos 1960, quando a entidade Tradição, Família e Propriedade, TFP, também apelou aos quartéis, e outro general Mourão — o Olímpio Filho — desencadeou o golpe de 64 contra um governo legítimo.

Por seus métodos, linguagem, comportamento e estética – nacionalismo exacerbado, brutalidade e violência, cultura do ódio e ódio da cultura, unidade do povo, culto da personalidade, sectarismo político, moralismo etc. – há um amplo consenso de que o bolsonarismo é um movimento fascista. De longe mais popular e efetivo que o integralismo de Plínio Salgado, no final dos anos 1930, ainda durante a Era Vargas. É possível admitir que se Jair Bolsonaro fosse realmente um líder excepcional e forte — o que não foi —, capaz de galvanizar o apoio hegemônico das forças armadas — que não conseguiu — e, internacionalmente, mantivesse o apoio dos Estados Unidos — perdido com a derrota de Donald Trump — teria Bolsonaro claramente interesse em restaurar no Brasil algum tipo de regime abertamente autoritário, de extrema-direita. Sinais disso apareceram durante as eleições presidenciais, quando se falou em aumentar o número de juízes da suprema corte e no impeachment de eventuais “inimigos” de toga. Muito semelhante à cartilha de Hugo Chávez, na Venezuela, que Bolsonaro declarou ser “Uma esperança para a América Latina”.

O problema mais grave de Jair Bolsonaro foi a característica “bolha” de seu eleitorado. Inflexível, nunca conseguiu no papel de presidente superar os limites do candidato, constituindo-se em mandatário de segmentos estritos da sociedade, e não de toda a nação em sua diversidade e pluralidade. Se não distinguiu pretos, pobres, índios, gays e mulheres — cada qual com suas demandas específicas —, é porque os tratou como “iguais”, escamoteando assim uma clara e ameaçadora desigualdade numérica e de acesso a direitos básicos, que o Estado deve prover. Ademais, se essa maioria concordasse com a opinião de Bolsonaro, teria ele sido mais popular em todos os extratos sociais, o que nunca foi confirmado pelas pesquisas de opinião. O presidente tornou-se, assim, vítima do próprio facciosismo, de onde resultou a pior popularidade de um mandatário desde a redemocratização, na faixa de 30%. Além de condenar brasileiros à morte, destruir florestas, combater órgãos ambientais e culturais e asfixiar a educação pública, a virulência bolsonarista corroeu por fim o debate público, que, mais qualquer outro, transformou em ambiente de extrema desinformação e baixaria.

Foi esse projeto, de escala inédita no Brasil, que testou severamente os fundamentos da democracia, que sai avariada mas vitoriosa do round eleitoral. Vale lembrar, uma democracia ainda incipiente: manifestou-se apenas em dois curtos intervalos: de 1954 a 1964 e de 1985 até o presente, perfazendo uma curta experiência de 45 anos. Seu marco de fundação, há mais de 200 anos, foram eleições livres, método por excelência dos regimes democráticos representativos. E justamente as eleições, que deram a Bolsonaro sete mandatos consecutivos, sofreram por fim ataques violentos dele enquanto presidente. Desta feita, questionou sem provas o método eletrônico que tornou nosso país referência mundial. Ao que parece por ter antevisto — depois de 26 anos em absoluto silêncio sobre o tema —, sua primeira derrota eleitoral. Questionar as urnas sob tais condições parece uma conveniência, da qual ele e sua família seriam os principais beneficiários. As forças armadas confirmaram a integridade do sistema eleitoral, mas Bolsonaro proibiu a divulgação do parecer.

As eleições ocorreram quase dentro da normalidade em outubro de 2022. A desvantagem eleitoral do bolsonarismo deve forçar o reconhecimento da vontade popular. É claro: as redes sociais alteraram dramaticamente a relação entre poder e opinião pública, dividida quase ao meio. O acirramento dos ânimos deve continuar latente, com o extremismo organizado. Mas o principal teste do regime constitucional, vigente no país, revelou força inédita contra os golpes encestados por um inimigo visceral e determinado. Nossa democracia — apoiada por 79% dos brasileiros, segundo o Datafolha — deu um passo gigantesco rumo à efetiva consolidação: os próximos anos servirão para confirmar essa hipótese. E esperamos poder afirmar que depois de 1988 e 1989, 2022 é, por causa do teste autoritário, o ano crucial da democracia brasileira desde a constituição de 1988.

J.C. Guimarães

Crítico literário.