Dostoiévski e Virginia Woolf não existiam para Javier Marías, o escritor madrilenho que deixou uma obra ímpar

Dostoiévski e Virginia Woolf não existiam para Javier Marías, o escritor madrilenho que deixou uma obra ímpar

Javier Marías, morreu em setembro de 2022, aos 70 anos, foi tratado no Brasil como se deve lidar com um grande escritor: publicando suas obras mais importantes. A Companhia das Letras editou vários de seus romances, com traduções precisas de Eduardo Brandão, que, dotado de uma perícia estupenda, captou o ritmo, a musicalidade da frase longa do escritor, tradutor e crítico espanhol. Falta lançar seus ensaios de crítica literária a respeito de vários escritores, como William Faulkner e Vladimir Nabokov, dois de seus pares preferidos. Escreveu também livros sobre cinema e futebol.

O livro “As Entrevistas da Paris Review” (Companhia das Letras, 459 páginas, tradução de Christian Schwartz e Sérgio Alcides) contém uma longa conversa entre Javier Marías e Sarah Fay, publicada em 2006. Ele conta sobre como se tornou “rei” da ilha de Redonda (publicarei em breve um texto sobre o assunto).

 A entrevistadora inquire: “Como o sr. evita se levar demasiadamente a sério?” O escritor responde: “Não se trata de evitar. Ou a gente tem a sensação de que é importante e será lembrado, ou não tem. (…) Pensar em posteridade, hoje, é ridículo, porque as coisas não permanecem. Os livros parecem durar mais do que filmes ou discos, mas mesmo eles não têm vida longa. Hoje, mais do que nunca, estamos à mercê dos vivos”.

Seu Rosto Amanhã, Javier Marías
Seu Rosto Amanhã, Javier Marías — Volume 1 (Companhia das Letras, 408 páginas)

Será que escritores recentes, como Philip Roth e Javier Marías, vão persistir como Homero (antes de Cristo) e Flaubert (nascido há 201 anos)? Não dá para saber, claro. Alguns Nobel de Literatura foram esquecidos por não terem a estatura literária de um T. S. Eliot ou de um Thomas Mann. E há não nobelizados, como Tolstói, Proust, Joyce, Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, que estão aí firmes — a caminho de se tornarem tão “resistentes” às intempéries do tempo quanto Homero, Virgilio, Dante, Shakespeare, Cervantes e Flaubert.

Javier Marías não tem “vergonha” de seus dois primeiros romances. “Não me fazem corar. (…) São imitações, paródias. Quando a gente é muito jovem, escreve, na verdade, exercícios.” “Os Domínios do Lobo”, o primeiro romance, é uma paródia do cinema americano e a história acontece nos Estados Unidos. “É divertido. O segundo, ‘Travessia do Horizonte’, é mais literário.”

Quando mais jovem, Javier Marías era apontado como um escritor europeu, quiçá inglês, mas pouco espanhol. O criador de “Negro Dorso do Tigre” discorda: “A maioria dos meus personagens é espanhola e meu país está presente em meus livros, mesmo não sendo romances tipicamente espanhóis. Não escrevi no registro folclórico dos quais algumas pessoas têm se aproveitado”. (Poderia se dizer que Graciliano Ramos é um escritor “russo”, da linhagem de Tchékhov, por ser diferente, por exemplo, de José Américo de Almeida, Jorge Amado e outros autores palavrosos? Claro que não, ainda que se possa sugerir que o Velho Graça se inventou como escritor, pois, antes dele, ninguém no Brasil havia escrito de maneira tão concisa. Percebo que seu irmão literário é um poeta, João Cabral de Melo Neto, e não outro prosador.)

Em seguida, passaram a publicar que Javier Marías “escrevia como se traduzisse”. “O que, para mim, era um elogio. Você sabe o quanto considero a tradução importante.” Mas a crítica era “negativa”. Tendo as críticas falhado em interpretá-lo, porque eram mais preconceitos a respeito de sua prosa, digamos, universalista, passaram a considerar que seus livros eram “muito frios, muito cerebrais”. Porém, quando publicou um livro menos “frio”, “disseram que escrevia para mulheres”. O escritor nem achou ruim a observação: “As mulheres leem mais, e considero que são os melhores leitores precisamente porque leem mais”.

Quando Fui Mortal, Javier Marías
Quando Fui Mortal, Javier Marías (Companhia das Letras, 168 páginas)

Inquirido se é fácil escrever sobre mulheres, e na perspectiva delas, Javier Marías afirma que não é nada fácil. “Minhas personagens femininas ficam um pouco na sombra. Não ouso retratá-las por completo. (…) A ideia de um homem escrevendo na voz de uma narradora e de uma mulher escrevendo como homem me parece absurda. Sei que muitos se saíram bem — Flaubert fez isso muito bem. Livros assim são meio inacreditáveis, para mim. Só uma vez, num conto, escrevi da perspectiva de uma mulher. Não seria capaz de sustentar uma narradora por um romance inteiro. Meus romances mais recentes [lembrando que a entrevista é de 2006] são em primeira pessoa, e as personagens femininas, sempre vistas da perspectiva de um homem. (…) Existe uma coisa chamada subjetividade.”

Machado de Assis, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, inventou um fantasma que talvez seja a maior personagem da literatura patropi. A história, de tão bem arquitetada, como uma espécie de reinvenção de Laurence Sterne, o de “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy” (Companhia das Letras, 768 páginas, tradução de José Paulo Paes), acabou por influenciar o romance “Indignação”, de Philip Roth. Cá entre nós, e que os fantasmas de Roth e Javier Marías não estejam escutando (ou lendo), o romance do brasileiro do Cosme Velho permanece insuperável.

Leia o que afirma o escritor espanhol: “Um dos melhores pontos de vista para se contar uma história é o de um fantasma, alguém que, embora morto, continua a testemunhar os fatos. Não que eu acredite em fantasmas, mas um fantasma é alguém a quem tudo já aconteceu, alguém que não pode intervir realmente — ou pode, mas muito pouco. Ao mesmo tempo, é alguém que ainda se importa com aquilo que deixou para trás, tanto que volta. Pode-se dizer que meus narradores são fantasmas, nesse sentido peculiar. São passivos, mas ainda curiosos, observadores”.

Quando não está escrevendo, o que mais “distrai” Javier Marías é música. “A mais elevada das artes” (opinião da qual discordava João Cabral de Melo Neto). “Gostaria de fazer algo parecido com música com palavras, mas não é possível. O problema das palavras é que elas não podem não ter significado, ao passo que a música tem esse privilégio: ela pode não ter nenhum significado. E ainda assim há aquelas notas que imediatamente fazem a gente se sentir melancólico. Por que será? Com as palavras, contam-se coisas terríveis e tristes — e é claro que o leitor se sente do mesmo jeito —, mas a música tem esse mistério”.

Seu Rosto Amanhã, Javier Marías — Volume 1
Seu Rosto Amanhã, Javier Marías — Volume 2 (Companhia das Letras, 360 páginas)

O belíssimo “Negro Dorso do Tempo” (Martins Fontes, 339 páginas, tradução de Eduardo Brandão) é apresentado como romance. Mas seria um livro de memórias — inclusive contendo fotografias e mapas?

Javier Marías chama o livro de “falso romance”. “Uso essa expressão porque não consigo aceitá-lo como um romance. Ele relata algo que é verdade, que de fato aconteceu a alguém com meu nome, o do autor. Ao mesmo tempo, não posso dizer que seja uma autobiografia. Mesmo com minhas digressões, é mais uma narrativa do que qualquer outra coisa. (…) A maior parte dos fatos é verdadeira, mas alguns foram inventados para caber numa passagem em particular. (…) Dá para ler como um romance, mas não pode ser um romance — para mim — porque o que conto realmente aconteceu.”

(O “romance” começa assim: “Creio ainda nunca ter confundido a ficção com a realidade, muito embora as tenha misturado em mais de uma ocasião, como todo o mundo, não apenas os romancistas, não apenas os escritores, mas todos os que relataram alguma coisa desde que começou nosso conhecido tempo, e nesse tempo conhecido ninguém fez outra coisa senão contar e contar, ou preparar e meditar seu conto, ou maquiná-lo”.)

Quando se usa a imaginação para contar ou recontar uma história a realidade se torna, digamos, ficção. E a ficção, com sua abrangência criadora, pode levar um fato a se tornar, por assim dizer, mais estabelecido ou compreendido.

“O que entrego aos leitores vem da minha experiência e do que inventei, mas tudo filtrado na literatura. É isso que conta: o filtro. (…) Não interessa, na verdade, se isto saiu da realidade e aquilo não. Em ‘Seu Rosto Amanhã’, não importa muito se a história do pai do narrador é a história do meu próprio pai [o filósofo Julián Marías, que, perseguido pela ditadura de Francisco Franco, foi compelido a lecionar nos Estados Unidos] ou não. Só importa porque estou vivo e meu pai foi uma pessoa conhecida na Espanha, mas na Hungria ninguém sabe disso. Lá vai ser lido como um romance, aqueles leitores farão o esforço de acreditar no que foi inventado”, assinala Javier Marías.

Seu Rosto Amanhã
Seu Rosto Amanhã, Javier Marías — Volume 3 (Companhia das Letras, 616 páginas)

O romance “Todas as Almas” (Martins Fontes, 232 páginas, tradução de Monica Stahel) contém duas fotografias do escritor britânico John Gawsworth. “Conto parte da história dele — de sua história real —, e muita gente pensou que essas passagens eram absolutamente inventadas. (…) Um romance, ou qualquer artefato artístico, aceita menos do que a realidade. As coisas acontecem mesmo, mas às vezes, colocadas num romance, não são críveis. A vida é um romancista muito ruim. É caótica e ridícula.”

A entrevistadora postula que Javier Marías usa o tempo de uma maneira incomum nos seus livros. “Seus narradores pensam e divagam por páginas e páginas. Fazem longos desvios”, frisa Sarah Fay. A observação é precisa, mas o autor responde assim: “Acontece com todo mundo, não é? Mas acho que esses desvios são bem controlados. Sempre retornam para onde devem retornar”.

É uma resposta correta, mas e o ponto de vista dos leitores, que, em geral, avaliam sua literatura como complexa e, até, enviesada? Os fios soltos permanecem soltos, e por intenção do criador. As digressões dos narradores, interrompendo o curso dos acontecimentos, são feitas de modo proposital, afirma o escritor. “Minha intenção — minha esperança — é de que todas as digressões em meus livros sejam interessantes por si próprias para fazer o leitor esperar, e não só por esperar, mas para que diga: ‘O.k., esse autor interrompeu a história e eu gostaria de saber o que acontece com a espada [um homem pretende “cortar a garganta de outro”], mas o que veio em seguida, em lugar do destino daquela espada, é algo que me interessa também’. Testo a paciência do leitor propositadamente, mas não à toa”.

Leitora perspicaz, Sarah Fay nota que “as frases” dos romances de Javier Marías “são longas e convolutas [enroladas “sobre si ou em volta de algo”, de acordo com o dicionário “Houaiss”], cheias de parênteses e subordinações”. Em comparação, as frases de Faulkner parecem “curtas” (a entrevistadora poderia ter sido Proust). O escritor responde: “Tanto Faulkner quanto [Henry] James foram influências fortes nesse sentido. A diferença entre os dois é que Faulkner às vezes parece perder de vista o ponto de vista. E parece não encontrar o lugar do ponto final. Isso não é ruim [e é moderno, poderia ter acrescentado Javier Marías]. Do ponto de vista literário, é mostra de muito vigor, é poderoso. Ao passo que James [autor de “As Asas da Pomba” e “Retrato de uma Senhora”] nunca se esquece de onde partiu. Sempre encerra a sentença”. Juan Benet e Thomas Browne também influenciaram o prosador espanhol.

O Homem Sentimental
O Homem Sentimental, Javier Marías (Companhia das Letras, 160 páginas)

Minhas frases com frequência são muito longas — há muitas subordinações —, mas minha prosa é para ser lida rapidamente, e não de forma arrastada. É pensada para ter continuidade. — Javier Marías

Javier Marías acrescenta: “Minhas frases com frequência são muito longas — há muitas subordinações —, mas minha prosa é para ser lida rapidamente, e não de forma arrastada. É pensada para ter continuidade. Pode reparar que, às vezes, uso vírgulas de maneira estranha, mas não é que não use pontos. Uso. Na verdade, odeio livros que não usam. Na minha cabeça, do meu uso de vírgulas em vez de pontos ou mesmo no lugar de parêntesis propriamente ditos resulta uma espécie de enjamement. Talvez esse recurso seja mais faulkneriano. Minha esperança é que ajude a tornar o texto mais vivo”. De fato, fica mais vivo, mas o leitor tem de redobrar a atenção na leitura de seus livros, de suas frases, senão acaba deixando de capturar inclusive o sentido das histórias, devorado, quem sabe, pela forma. O leitor de Javier Marías precisa ser atento e perspicaz.

Sarah Fay diz que Faulkner, Albert Camus e D. H. Lawrence “não existiam para” Vladimir Nabokov. Esqueceu de citar Fiódor Dostoiévski, que, para o autor de “Fogo Pálido”, era um autor de segunda linha, muito abaixo de Gógol, Tolstói, Tchékhov e Turguêniev (e, claro, Púchkin — a grande paixão do criador de “Ada”).

O autor de “O Homem Sentimental” (Companhia das Letras, 158 páginas, tradução de Eduardo Brandão) repete Nabokov em parte (não pode segui-lo quanto a Faulkner, que idolatrava): “Dostoiévski não existe para mim. Virginia Woolf não existe para mim. Seus ensaios são muitos bons, mas seus romances não me interessam muito. E Joyce. Seus contos são maravilhosos, mas os romances são muito artificiais, até mesmo pomposos”.

Não há dúvida de que se trata de uma interpretação das mais heréticas, considerando que a prosa de James Joyce não é, a rigor, pomposa (e, sublinhe-se, trata-se do “pai” do Faulkner de “O Som e a Fúria”). E toda prosa tem muito de artificial, nada é, digamos, “natural” em literatura.

Acender um fósforo no meio da noite num descampado não permite ver nada mais claramente, apenas ver com clareza toda a escuridão em volta. A literatura faz isso, mais do que qualquer coisa. Não ilumina, exatamente, mas, como o fósforo, permite enxergar o tamanho da escuridão que existe.

O problema a respeito do irlandês é que, para alguns, uma nova literatura, tendo nascido com ele, deve esmagar as demais — que não são, no geral, nem piores nem melhores; são, isto sim, diferentes. Apreciar o autor de “Dublinenses” (contos) e “Ulysses” (romance) não deve levar o leitor (e o crítico) a menosprezar Balzac, Tolstói, Stendhal, Proust e Thomas Mann. Não se deve ler autores — anteriores e posteriores — a partir do ponto de vista literário ou, vá lá, “anti-literário” de Joyce, Faulkner e Guimarães Rosa. Pode ser a “morte” da amplitude da literária. Felizmente, ninguém consegue “aprisionar” a literatura — a grandeza de um Tolstói, de um Proust e de um Thomas Mann — em “guetos” excludentes (uma redundância necessária).

Assim Começa o Mal, Javier Marías (Companhia das Letras, 520 páginas)

Apreciadores de literatura certamente hão de discordar sobre a opinião a respeito de Dostoiévski (aliás, o autor não explica o motivo de sua aversão) e Virginia Woolf. “Os Irmãos Karamázov” e “Crime e Castigo” são romances poderosos — russos e, sim, ocidentais, quer dizer, universais, tanto que entraram para o imaginário coletivo. “As Ondas” e “Orlando” (cada vez mais moderno, na forma e no conteúdo) são romances estupendos. O russo e a britânica reverberam por aí, vivíssimos.

“Escritores como Kafka são tão fechados em si que não permitem seguidores, enquanto alguém como Shakespeare, deixando tantos caminhos inexplorados, tantas coisas apenas insinuadas e imagens fortes inexplicadas, convida não a segui-lo, mas à inspiração. Ele me inspira”, pontua Javier Marías.

Inquirido sobre porque escrevia, Javier Marías declara: “Nunca tive um projeto literário ou um plano. Não pretendo pintar um painel do meu tempo, nem quero renovar o gênero. Nem mesmo estou preocupado em ser original. Tentar ser original é muito perigoso. Quando alguém diz que vai tentar revolucionar a literatura, quase sempre o resultado é ridículo. Talvez eu escreva por ser um modo de pensamento sem paralelo. Pensa-se mais claramente quando se tem de colocar algo em palavras. (…) Já se disse que escrever é um jeito único de conhecer, mas é mais um jeito único de reconhecer. Acontece com Proust, em particular. (…) Não diria que penso melhor quando escrevo. Mas penso diferente”. A escrita é, afinal, elaboração; aquilo que se fala ganha consistência, ou, noutra palavra, formulação.

A entrevistadora quer saber o que Javier Marías quer dizer com “pensamiento literario”. “Se fecho um livro e não ficam ecos, é muito frustrante. Gosto de livros que não sejam só espirituosos e hábeis. Prefiro alguma coisa que deixa uma ressonância. É o que acontece comigo quando leio Shakespeare e Proust. Há certas iluminações e vislumbres de coisas que proporcionam uma forma completamente diferente de pensar.”

“Estou usando palavras que têm a ver com luz porque, às vezes, e acredito que foi Faulkner [em “Luz em Agosto”] quem disse isso, acender um fósforo no meio da noite num descampado não permite ver nada mais claramente, apenas ver com clareza toda a escuridão em volta. A literatura faz isso, mais do que qualquer coisa. Não ilumina, exatamente, mas, como o fósforo, permite enxergar o tamanho da escuridão que existe”, relata Javier Marías.

Os Enamoramentos, Javier Marías (Companhia das Letras, 344 páginas)
Os Enamoramentos, Javier Marías (Companhia das Letras, 344 páginas)

Há críticos viperinos das ilusões e do autoengano, como o economista-filósofo brasileiro Eduardo Giannetti. Mas escritores pensam de maneira divergente, de acordo com Javier Marías: “As ilusões são importantes. Aquilo que se prevê ou de que se lembra pode ser tão importante quanto o que realmente acontece”.

O excesso de violência na literatura não agrada a Javier Marías: “Odeio o tipo de romance que enfileira uma brutalidade depois da outra apenas para chocar. É muito fácil impressionar o leitor com isso. É mais aterrorizante quando fica insinuado”.

Quando escreve (escrevia) seus romances, Javier Marías afirma(va) que não é de ficar consultando anotações. “Tudo que tenho de anotações — se é que dá para chamar assim — para os três volumes de ‘Seu Rosto Amanhã’ [trilogia “Febre e Lança”, “Dança e Sonho”, “Veneno, Sombra e Adeus”, Companhia das Letras, tradução escorreita de Eduardo Brandão] é uma folha de papel. (…) Em meus romances, há o que chamo de um sistema de ecos e ressonâncias. Uma frase reaparece, às vezes com uma variação. Tento fazer com que seja não simplesmente uma repetição, mas uma luz sobre a ocasião anterior que apareceu. (…) Nunca coloquei minhas mãos num computador, mas me disseram que facilitaria muito minha vida. Parece que poderia saber exatamente quando usei certa palavra aqui ou acolá”.

Não há a menor dúvida de que, tendo escrito mais de 30 livros — 16 romances (o último, “Tomás Nevinson”, de 688 páginas, não foi lançado no Brasil) —, Javier Marías publicou muito. Mas, no dia a dia, não era um escritor torrencial. “Muito raramente escrevo mais de uma página por dia, às vezes duas, o que significa que não avanço muito rápido. Até que tenha terminado uma página na sua melhor versão e a reescrito tantas vezes quantas forem necessárias, não passo para a seguinte. (…) Muito do que escrevo no começo de um romance ocorre por acaso.”

Como não faz um planejamento rigoroso para escrever seus romances, Javier Marías afirma: “Sei mais ou menos para onde estou indo. (…) Para mim tudo é inesperado. Gosto de não saber de tudo. O verbo inventar vem do latim invenire, cujo significado é descobrir, encontrar. É o que gosto de fazer ao escrever: descobrir sobre o que estou escrevendo enquanto escrevo. Decido na hora. (…) Quanto mais velho fico, menos entendo o processo de escrever. Escrevo cada página como se tudo se resumisse a ela. Me parece muito estranho que dali saia alguma coisa no final, e que se componha de muitas páginas e eu as tenha escrito linha por linha”.

Sarah Fay indaga: “Se o sr. não tem um roteiro claramente definido ao escrever, como sabe quando seus romances terminam?” Javier Marías diz que sabe “porque não há nada mais para ser contado”. Borges não acreditava no “conceito de um texto definitivo”.  “Pensava que a única razão para termos aquilo que consideramos textos definitivos é o cansaço do autor. (…) Há um sentimento de grande vivacidade presente, às vezes, nos personagens literários, quando se permanece submerso com eles em certa atmosfera. Ainda assim, tem uma hora em que a gente está pronto para voltar para o mundo”.

Este texto é uma pálida síntese da entrevista, cujas 41 páginas merecem ser lidas integralmente. O que colhi às vezes nem é o mais importante, e sim aquilo que despertou a minha atenção como leitor.

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.