Depois das eleições a gente se ama

Depois das eleições a gente se ama

Era domingo na folhinha. O último do mês de outubro, conforme previa a constituição federal. Acordaram mais cedo do que o costume. Ela deslizou a sola do pé nas costas dele com pistas de querer se divertir. Mas, ele comentou que estava sem cabeça para brincar de fazer nenê.

— Depois da apuração dos votos, depois da apuração — ele disse.

Ela foi tomar uma ducha, sonhando com comemorações. Ele foi coar o café. Preferia cuidar daquela tarefa pessoalmente.

— Em casa de gente forte não se toma café fraco — desceu a escadaria a cantarolar um jingle que ouviu quando era criança e que nunca mais desgrudou dos seus ouvidos.

Assim que a cadelinha sentiu o seu cheiro, saltou com energia, de contentamento. Amava os seres humanos mais do que os seres humanos se amavam. O espírito de rivalidade no país não parava de crescer. Ele tinha sofrido assédio moral na empresa onde trabalhava. Ele e os demais colegas tiveram os empregos ameaçados caso o candidato do lado de lá vencesse as eleições. O patrão nunca se dignava em citar o nome do opositor. Foram meses intermináveis de difamações, de mentiras e de ameaças à ordem institucional do país. Brigaram com alguns parentes defendendo as suas convicções políticas. Davam um boi para não entrar numa briga e uma boiada para defender a democracia.

A pia cheia de vasilhas depois se via quem as lavasse. Foco total nas eleições presidenciais. Checou nos jornais os resultados das últimas pesquisas de intenção de voto.

Animou-se com a liderança apertada do seu candidato. Levou a cachorrinha para urinar no gramado. As garagens dos vizinhos da frente e dos lados estavam lotadas de carros plotados com a foto do outro presidenciável.

Ultimamente, passaram a se sentir um tanto deslocados naquele condomínio de bacanas. Se procurassem direito, talvez, quem sabe, encontrariam algum gato pingado que compartilhasse a mesma visão de mundo e que votasse alinhado com eles. Eram um casal burguês com coração proletário. Pensaram em se mudar para uma casa mais modesta, noutro bairro menos elitizado, mas, concluíram que o estigma de serem bem-sucedidos financeiramente não era motivo para constrangimento. Todo o patrimônio material de que dispunham tinha sido construído com trabalho exaustivo, honesto, ilibado, uma verdadeira peleja de sol a sol.

Ela comentou que o dia estava perfeito e que queria aproveitar o tempo bom para se bronzear um pouco. Parecia uma lagartixa albina, ela brincou. Mas, falava aquilo somente para provocá-lo. Amavam-se com afinco. Ele respondeu que gostava da pele dela naquele matiz original, que a estiagem tinha se prolongado mais do que a conta, que era premente voltar a chover e que não estava mais se aguentando de tanta ansiedade para ir votar.

Preferia que fizessem isso ainda pela manhã. Na hora do almoço, as filas estariam cabulosas. Melhor seria evitar as aglomerações por causa do vírus do ódio que contaminara boa parte da sociedade nos últimos anos.

Ela questionou sobre a camiseta lilás que ele vestiu, pois, levava justamente as cores do partido. Ponderou, cuidadosa, que deveriam se vestir de branco, que era uma cor neutra, a cor de quem desejava a paz, a fim de evitar as provocações dos radicais reacionários. Moravam numa cidade que era um verdadeiro reduto eleitoral do oponente.

Seria muito arriscado deixar transparecer a ideologia. Irritadiço, ele argumentou que aquilo era uma questão de liberdade política, do livre pensar, do ir e vir e coisa e tal e blá-blá-blá. Usaria a roupa que bem entendesse e ninguém, a não ser ela, que ele tanto amava, tinha alguma coisa a ver com isso. Ela sorveu uma xícara inteira de café, enquanto afagava os cabelos dele, transbordando ternura frente à tamanha teimosia.

Catou a chave do carro. A cadelinha levantou as orelhas, saltitou esperançosa, a pensar que fosse passear também. Acabou premiada com um ossinho. Saíram os dois. Nunca se lembravam da rua exata onde ficavam as seções eleitorais. Entraram numa escola que, a princípio, lhes parecia familiar, mas, logo perceberam que estavam no lugar errado. A ansiedade recrudesceu. Pensavam em ter um filho, se o resultado das urnas fosse satisfatório. Era isso ou mudar de país para procriar noutro território, noutro contexto sociopolítico. Ela decretou, contudo, que era preciso mudar o país e não mudar de país.

— Desesperar, jamais — cantarolou, linda como um canteiro em flor.

Dirigiram por cinco quadras até o local correto de votação. Tinha um formigueiro de gente entrando e saindo do prédio. Abraçaram-se no meio do pátio, refeitos de esperança e de contentamento. Cada qual caminhou até a sua seção eleitoral. Combinaram de se encontrar do lado de fora, na calçada, ao lado do carrinho de pipoca. Ela gastou mais tempo do que imaginava para cravar o voto na urna. A fila estava monumental. Ouviu um foguete espocando do lado de fora e gritaria de gente. O povo estava realmente eufórico. Quando finalmente conseguiu votar, teve uma sensação impressionante, algo comparável à alegria de um gol ou à explosão de um orgasmo. Estava doida para chegar logo em casa e se divertir. Sentia-se mais animada do que uma cadela brincalhona.

Ao sair da escola, enxergou a turba no meio da rua. Tinha uma viatura da polícia estacionada no local. Perguntou ao homem da pipoca o que foi que aconteceu e ele disse que um cara tinha sido baleado.

— Olha lá o corpo dele estendido no chão. Um sujeito de camisa lilás, manchada de sangue. O povo enlouqueceu de vez, moça. Não dá pra acreditar numa coisa como essa.

Depois da apuração dos votos, soube-se que, apesar dos esforços, a esperança tinha sido ferida de morte. Não houve comemoração em casa. A tristeza tirava todo o tesão da gente.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.