Novo suspense da Netflix é um dos melhores filmes do ano e prenderá o espectador até o último segundo JoJo Whilden / Netflix

Novo suspense da Netflix é um dos melhores filmes do ano e prenderá o espectador até o último segundo

O mal se esconde nos lugares mais insuspeitos. Cada vez mais perdido e cada vez mais selvagem, o homem parece cansado de ao menos fingir-se um ser civilizado, disposto a submeter-se a determinadas regras — umas tão óbvias quanto fundamentais, outras bastante refinadas e só aplicáveis em contextos específicos —, e revela seu lado desabridamente soturno, libertando a besta que o habita e o domina nos momentos em que a razão não é conveniente. Ao mesmo tempo, a vida se nos apresenta como um ajuntamento de autocobranças com seus ulteriores dilemas existenciais tão característicos, muitos profundos como um balde, e as incertezas quanto ao que reserva-nos o futuro, essas, sim, inquietantes. Temer ser surpreendidos pelos tantos inesperados da vida sem que ainda estejamos prontos, mais que prudente, é uma atitude que denota sabedoria e certa humildade diante da vida e, principalmente, diante da morte, que pode colher qualquer um no instante de que só se esperava bem-aventurança, sucesso, esplendor, mais vida, enfim.

Os incontáveis golpes com que nos assalta o destino vêm em boa parte sob a forma de apuros de saúde, sem a qual pouco se pode fazer e contra os quais é mister lutar. Ganhar a vida com o suor do próprio rosto, com trabalho, honesto, digno e capaz de absorver-nos de tal maneira que esquecemos das questões fundamentais e inadiáveis que nos atormentam em segredo, é um princípio imperioso pelo qual se guia toda mulher e todo homem que se pretende admirável, nem que seja para si mesmo. No fundo, é disso que se trata “O Enfermeiro da Noite” (2022), a história de um assassino em série devotado, que foi deixando um rastro de mortes ao longo de mais de sete anos, mas principalmente o tributo a uma mulher singular. O diretor Tobias Lindholm é hábil em manipular o foco do espectador para uma direção e, aos poucos, fazê-lo notar a grande personagem que deixa a o segundo plano e ocupa o centro do roteiro de Krysty Wilson-Cairns, baseado no livro homônimo de Charles Graeber sobre um evento melancolicamente verídico.

Este é mais daqueles casos que entram para o anedotário do cinema graças à transcrição equivocada do título. O filme chama-se originalmente “The Good Nurse”, ou “a boa enfermeira”, em tradução literal, mas a opção de se jogar as luzes sobre o personagem de Eddie Redmayne, inquestionavelmente um dos melhores atores de sua geração — eu poderia ocupar todo o espaço desta crítica discorrendo sobre “A Teoria de Tudo” (2014), uma aula de interpretação dada por Redmayne no já clássico drama de James Marsh, com o qual, justificadissimamente, levou o Oscar de Melhor Ator, ou “A Garota Dinamarquesa” (2015), de Tom Hooper, que perde para o filme de Marsh por meio ponto —, com a óbvia mudança do artigo definido, a adoção da forma masculina do substantivo e o acréscimo do predicativo do sujeito para que não se tenha mais qualquer dúvida acerca de quem se está falando, é mais que artificial: é inadmissível. O ator e sua parceira de cena devem ter se rido muito da confusão proposital, uma vez que são amigos (tão amigos que andaram trocando saborosas impressões politicamente incorretas sobre o desempenho de Redmayne em “A Garota Dinamarquesa”), mas amigos, amigos, estrelatos à parte. É exatamente essa a sensação que se tem diante de sua performance confrontada com a da atriz principal de “A Boa Enfermeira”, digo, “O Enfermeiro da Noite”: os dois esgrimem um texto sutilmente afiado, que vai se tornando mais e mais teso à medida que se desenrolam os acontecimentos que confluem para o final sem surpresa, mas emocionante. Com a vantagem sempre pendendo para o time das meninas.

Jessica Chastain é o grande nome em, vá lá, “O Enfermeiro da Noite”, e Redmayne decerto há de me dar razão. Na pele de outra de suas mulheres à beira de um ataque de nervos, a exemplo da Maya de “A Hora Mais Escura” (2012), dirigido por Kathryn Bigelow, ou a protagonista do recente “Os Olhos de Tammy Faye” (2021), de Michael Showalter, que lhe possibilitou também levar seu homenzinho dourado para casa, Chastain deixa muito claro, desde o começo meio morno e insosso, aliviado pela ótima trilha de Biosphere — e agravado pela fotografia sem foto de Jody Lee Lipes (a estupidez picareta dos estúdios vendendo como suspenses filmes que são apenas mal-iluminados rende uma tese de doutoramento) — quem é a estrela aqui, opinião corroborada pelo júri do Festival Internacional de Cinema de Toronto. Sua Amy Loughren é a típica mártir: mãe solteira, classe média, completamente ocupada por um trabalho pelo qual parece não ser remunerada como se deve e, a cereja do bolo, portadora de uma cardiomiopatia grave, que a obriga a seguir na labuta quase sem forças em muitas ocasiões, e cujo tratamento depende de uma carência que leva quatro intermináveis meses para ser cumprida. Quando Charles Cullen, o colega interpretado por Redmayne, entra na sua vida, Lindholm faz quem assiste pensar que Amy vai, enfim, ter algum descanso. Mas o que acontece é que a boa enfermeira se flagra no centro de um escândalo, investigado por Tim Braun e Danny Baldwin, os detetives de Noah Emmerich e Danny Baldwin, excelentes.

Informações na tela na derradeira sequência esclarecem sobre o destino que tomaram Cullen e Amy, e o fim dessa história é feliz e triste. O grande trunfo de “O Enfermeiro da Noite” (me submeto, sob protesto) é juntar Chastain e Redmayne, nessa ordem, o que nos leva a uma conclusão elementar: por que ninguém pensou nisso antes?


Filme: O Enfermeiro da Noite
Direção: Tobias Lindholm
Ano: 2022
Gêneros: Mistério/Drama/Crime
Nota: 9/10