Às vésperas da Copa do Mundo de 2022, no Qatar, um afamado jornalista do Caderno de Cultura desafiou-me a escalar as duas maiores seleções, feminina e masculina, de todos os tempos do cancioneiro popular pátrio, orientando-me a escrever a crônica como fosse uma entrevista coletiva para divulgação dos excretes nacionais, nas mídias estrangeiras e tupiniquins. Vamos a elas; entretanto, cabe informar que, por puro cavalheirismo, irei iniciar a convocação pela equipe feminina de compositoras e intérpretes da MPB.
No gol, a inigualável Ângela Maria, a Sapoti, tornara-se titular absoluta por sua firmeza de timbre diante da meta. A maviosa arqueira do excrete nacional se destaca no cenário artístico, sobretudo quando se propõe a nortear as companheiras de equipe menos experientes, como a excepcional e talentosíssima Elis Regina. Para as outras duas vagas suplentes da posição,a comissão técnica decidiu-se por Dona Ivone Lara e Mônica Salmaso. Na lateral-direita, a versátil e moderna Dolores Duran, que, apesar do pouco fôlego, defende e ataca com a maestria de quem se apropria da melodia do jogo com personalidade e sensatez, a ponto de exigir de Tom Jobim a música que seria de Vinicius de Moraes, para fazer um gol antológico no glamoroso Maracanã da Bossa Nova, o Beco das Garrafas. A doce e geniosa Dolores Duran superou a raçuda Dalva de Oliveira, na acirrada disputa pelo lado direito da seleção brasileira feminina. Na zaga central, a gutural defensora Clementina de Jesus, a Xerife de Valença, talento nato de várzea, fora descoberta pelo olheiro-poeta Hermínio Bello de Carvalho, tendo como substituta a sobriedade da zagueiro-zagueiroAngela Ro Ro, que até poderia ficar de fora da lista pela precariedade do preparo físico e indisciplina, não fosse certa dose de lirismo e inteligência ressaltada por Glauber Rocha, que ostenta pelos gramados da vida. Na quarta zaga, a chorosa Chiquinha Gonzaga, capitã do time pela capacidade de liderança, pioneirismo e improvisação, não dando espaço para a sua voluntariosa substituta Cássia Eller, quarto-zagueira audaciosa, que, vez ou outra, tira a camisa para botar peito de fora, demonstrando vigor além da conta. Para composição da defesa musical, a magistral Elza Soares, que, indiscutivelmente, ganhou a posição por ser a única lateral-esquerda a parar, sem obstrução, o ponta-direita Mané Garrincha, obtendo como reserva imediata a canhotinha Rosinha de Valença, fenomenal instrumentista de refinada classe e categoria, digna de um Paco de Lucia.
No meio-campo, a cabeça de área Nara Leão dita cadência e ritmo do jogo com a sensibilidade vanguardista, de quem saiu da zona de conforto das areias de Copacabana para jogar pelada descalça no alto dos morros cariocas com Zé Keti, Cartola e Nelson Cavaquinho, tendo como suplente a lendária Carmen Miranda, que se naturalizara para brilhar com a camiseta canarinho. Na meia-direita, a maestrina Elizeth Cardoso, que, divinamente, vem a ser o cérebro da equipe, do nível de um Mestre Didi, suplantando Emilinha Borba. Na ponta de lança, a geniosa Elis Regina, a Pimentinha. A exímia detentora da camisa 10 verde e amarela, arrojada e impetuosa, azougue que teve a promissora carreira abreviada por um incidente trágico. Em sua ausência, o selecionado há de contar com a harmoniosa Adriana Calcanhotto, com a sua idoneidade provinda do sul do país.
No ataque, o trio será composto por Gal Costa, sinônimo de miscigenação e brasilidade provinda da Bahia, no flanco direito; pela esplêndida centroavante-sambista oriunda das Minas Gerais, Clara Nunes, a Guerreira; e pela fabulosa santoamarense Maria Bethânia, que levou a melhor na contenda com a destra Nana Caymmi, que, em verdade, rende mais pelo lado direito do campo de jogo. Goleadora contumaz, Clara desbancou Joyce Moreno, que já foi considerada um Chico Buarque de saias, segundo a própria possivelmente pelos olhos verdes, ao passo que a afinada Gal Costa deixou no banco de reservas a irreverente Rita Lee.
No excrete masculino, o técnico mister Heitor Villa-Lobos se deparou com a principal dúvida de escalação, uma vez que, até próximo ao início da Copa do Mundo, ainda não conseguira se decidir entre Milton Nascimento ou Nelson Cavaquinho, para defender o gol da equipe brasileira. O terceiro goleiro convocado fora Hermeto Pascoal, o Mago dos Sons. Na lateral-direita, o voluntarioso Luiz Gonzaga roubou a posição de Lupicínio Rodrigues, com sanfona, zabumba e triângulo. O zagueiro central Ary Barroso confiscou a posição por unanimidade pelo conjunto da obra, barrando o seu natural substituto Lamartine Babo. Entretanto, o defensor fora convocado e recebera a faixa de capitão, ao se consagrar pelo gol de placa da canção “Aquarela do Brasil”. Na quarta zaga, o superlativo Pixinguinha, que erguera a taça da humildade para se celebrizar como um dos maiores craques de todos os tempos, deixando o inconformado Mestre Candeia, no assento de suplentes. Na lateral-esquerda, o dono da posição não poderia deixar de ser o esplêndido Dorival Caymmi, que, apesar da fama de cadenciar, demasiadamente, a composição da partida, carregando consigo inclusive a injustiçada fama de lento e preguiçoso, pode vestir a camisa de um Nilton Santos. Diga-se de passagem, sem dever nada à Enciclopédia do Futebol. O suplente de Caymmi na posição vem a ser o ala subversivo Geraldo Vandré, que, caminhando e cantando, abocanhou a vaga do saudoso compositor de “Amélia”: Ai, meu Deus, que saudade de Mário Lago!…
O meio-campo será composto pelo center-alf Noel Rosa, cria de Vila Isabel, que aprendeu a fazer tabelas com o parceiro bom de bola Ismael Silva, herói incompreendido, no Largo do Estácio; e, depois, no Morro da Mangueira, com o magnífico Cartola. O camisa 5 da seleção brasileira será ladeado pelo fabuloso tropicalista Caetano Veloso, que, com a sua filosofia, revolucionou a maneira de se jogar com os vocábulos poeticamente, por intermédio de passes curtos de trivela, pensando o jogo com genial primazia. Na meia-esquerda, o monstro sagrado Chico Buarque de Hollanda, que corrobora a máxima de que filho de peixe, peixinho é. Não obstante, o magnífico autor de “Construção” tenha se consagrado como extraordinário conhecedor da alma feminina, o trovador Carioca foi o mais completo camisa 10 da saga dos compositores brasileiros de todos os tempos. Pelé dos olhos de ardósia. Os regras-três da meia-cancha serão o suntuoso Adoniran Barbosa para suplência de Noel Rosa; o habilidoso Aldir Blanc em caso de ausência de Caetano Veloso e o versátil Paulo César Pinheiro para caso de substituição do magnificente Chico Buarque, o Rei.
Na ponta-direita, o maior de todos os jogadores de tempos imemoriais, o espetaculoso João Gilberto, que era a encarnação melódica do Garrincha de Pau Grande, com as suas maravilhosas notas tortas, desafinadamente melodiosas em timbres de genialidade. Jogador completo, mesmo tendo marcado pouquíssimos gols de composição em sua trajetória musical. O promissor Gilberto Gil o admira a tal ponto de até se acomodar com o banco de reserva. De fato, o artilheiro Vinicius de Moraes era quem municiava o companheiro de equipe João Gilberto, juntamente com o engenhoso ponta-esquerda Tom Jobim, o Maestro, que tem como sucessor o hábil ambidestro Edu Lobo. Se o meio-de-campo da Seleção Brasileira do Cancioneiro Popular jogava a fina flor, imagina o que o entrosamento do Trio Bossa Nova seria capaz de aprontar com os adversários, com as setes notas musicais orquestradas pela poesia daquele moço boêmio de cavanhaque com faro de gol e mulher. Diz que o goleador Vinicius de Moraes era o inverso de Macunaíma, pois nascera ariano integralista até se transformar no branco mais negro do país, tendo sobrepujado o sofisticado Paulinho da Viola, que atua à moda Tostão como falso 9 na intermediária oponente.
A presidência da Confederação Brasileira de Música Popular (CBMP) será ocupada ad eternum pelo musicólogo Ricardo Cravo Albin e a comissão técnica masculina será composta, ainda, pelo auxiliar-técnico Braguinha, pelo ortopedista Luiz Melodia, pelo fisiologista Tim Maia, pelo preparador físico Sérgio Sampaio e pelo treinador de goleiros Jorge Ben. Enfim, já me precavendo das acusações de injustiça com o niteroiense radicado no EUA, Sérgio Mendes, com o percussionista Naná Vasconcelos, com a ranzinza Aracy de Almeida ou com a adelgaçada Zizi Possi, por exemplo, peço encarecidamente que os inconformados façam a sua própria convocação; e, de peito aberto, sem bazófias ou retranquismos, se habilitem a enfrentar as seleções da Copa do Mundo da World Music: Itália, Argentina, França, Alemanha etc.