Ao longo da vida, vão se sedimentando na alma do homem as consequências de anos de frustrações e mágoas, o que, por óbvio, têm seus desdobramentos. O espírito e tudo o que nele habita torna-se pesado, opaco; as lembranças que antes rescendiam à glória e júbilo passam a tresandar um cheiro nauseabundo, como se o que deveria ter sido retirado há algum tempo permanecesse, malgrado contra a nossa vontade, e se consumisse, e se decompusesse, tomando o espaço do que teria de novo a florescer e renovar os ânimos. Consegue-se tolerar a atmosfera de ruína que de nós mesmos exala até o ponto em que esse oceano de trevas se atém a ferver apenas dentro de nossas profundezas. Uma vez que suas águas principiam a arrebentar na praia da vida em sociedade, frequentada por toda sorte de gente — aqueles que nos querem bem, dispensam-nos seus conselhos com a melhor das expectativas, desejando que reencontremos a alegria capaz de revolver o lodo e dele só tirar pérolas, e os que apostam que está próximo o nosso último suspiro, que o lamento estertorado de nossas queixas prenuncia —, é momento de empreender uma tentativa qualquer a fim de virar o jogo enquanto ainda é possível.
Casamento é loteria. Homens e mulheres casam-se pelos motivos mais variados e incongruentes entre si, havendo ou não espaço para o amor. Em muitas circunstâncias, o que fica parecendo é que, a certa quadra da vida, a solidão torna-se tão insuportável que há que se tentar qualquer medida para debelá-la, sendo a união com uma pessoa com quem se compartilha alguma afinidade a mais óbvia. Como nunca paramos de querer — e não sabemos o que querer —, a companhia frequente do parceiro vira um tormento; essa é a deixa perfeita para que passem a integrar a equação os filhos, quase sempre desejados, mas que também irão manifestar seus próprios arbítrios, bem antes do que supõe a ingenuidade dos pais. Ninguém nasce pai ou mãe, naturalmente: educar e prover o sustento de um filho é uma habilidade que só o tempo pode conferir, com maior ou menor empenho das partes em questão. Até que mais variáveis façam-se observar.
Esses obstáculos para a harmonia de duas pessoas que se gostam, por mais que se desentendam, tomam a forma de uma garotinha aparentemente indefesa e inofensiva, encarnação de um mistério que se abate sobre um casal perdido em suas ilusões. “Jaula” (2022), é uma máquina bem azeitada em que o suspense recrudesce e diminui, da mesma forma que o enredo, banal no início, perturbador depois. O thriller do espanhol Ignacio Tatay é uma história nada fácil contada sem dificuldade.
A maneira como Paula e Simón são apresentados ao público é a metáfora mais adequada para defini-los. Os personagens de Elena Anaya e Pablo Molinero Martínez atravessam uma crise no casamento, exposta com uma melancolia quase trágica no roteiro de Tatay e Isabel Peña. Como se esperassem os bárbaros, feito o eu lírico do poeta grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933), os dois adiam a decisão de se separar, até, em deslocamento por uma estrada deserta numa noite lúgubre, deparam-se com uma cena que desafia a razão: uma garota lhes interdita a passagem. Eles resolvem levá-la consigo, sem imaginar o risco que sua bondade implica.
Filigranas do texto do diretor-roteirista e sua colaboradora esclarecem, como boa dose de licença poética, qual o nome da menina e de onde veio. Klara, uma boa aparição de Eva Tennear, parece à beira de um colapso nervoso, na raras vezes em que abre a boca só se comunica em alemão, e, o que acaba por virar o fio condutor da narrativa, se recusa a sair do espaço definido com quatro retas no chão, fechadas num quadrado. Sempre que Paula, Simón ou algum imprevisto tentam obrigá-la a deixar esse seu pequeno reino, Klara se transfigura, o que a nova mãe entende como uma reação a possíveis maus tratos quando em convívio com sua família biológica.
Tatay dá ao espectador pistas que lhe permitem inferir onde pode dar a relação de Paula, Simón e Klara, destacando os conflitos que essa mãe involuntária enfrenta em nome de um sentimento que lhe é ainda desconhecido, mas que a arrebata mais e mais. No encerramento, “Jaula” aponta para um hiato físico entre as duas, sem que isso signifique que tenham se afastado, pelo contrário até. O amor de uma verdadeira mãe resiste a despeito de convenções e documentos.
Filme: Jaula
Direção: Ignacio Tatay
Ano: 2022
Gêneros: Terror/Suspense
Nota: 8/10