Em seu “Tractatus Logico-Philosophicus”, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) defende que o mundo jamais seria representado à perfeição por linguagem nenhuma, dada a sua vastidão, sua pluralidade, sua natureza fundada no caos e fortalecida por ele. O maior grau de progresso que o homem seria capaz de atingir é o que ele mesmo conseguira apreender do mundo, ideias que tocam não o real, mas parte — a menor parte — do imaginado e mesmo do quimérico. Em sendo assim, o mundo para Wittgenstein é um simulacro de mundo, isto é, a pálida noção que temos da realidade, e nisso se baseia sua teoria pictórica do significado. Se o mundo como o conhecemos é só o mundo como o conhecemos, como se poderia classificar a outra vida que se nos apresenta por meio da realidade virtual? Uma encarnação do sonho? Uma vida inventada? Qualquer dos dois pressupostos poderia ser tomado por verdadeiro, desde que ninguém nunca ousasse afirmar que há alguma chance de uma se amalgamar ao outro. O homem jamais suportaria viver o que ele mesmo sonha, sob pena de estar sob o risco perene de deixar-se absorver por seus devaneios, berço de toda a utopia e, destarte, a mina de onde brotam as nefastas elucubrações a respeito de sociedades politicamente irrepreensíveis, em que há não espaço nem tolerância para falhas de qualquer natureza. Todos sabemos onde isso sempre haverá de dar.
O pensamento de Wittgenstein junta-se ao de outro vulto da filosofia igualmente reverenciado por sua crítica à hesitação fundamental do homem. Em “O Mundo como Vontade e Representação”, publicado em 1818, o polonês Arthur Schopenhauer (1788-1860), defendia o conceito de vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a bons propósitos, apenas hipotéticos. Com ideias semelhantes sobre um recorte muito específico do indivíduo, Wittgenstein e Schopenhauer, homens muito à frente de seu tempo, alertam, cada qual a seu modo, sobre questões que nunca deixaram de atormentar o gênero humano — e o têm feito com muito mais vigor neste tão confuso século 21.
Uma das grandes obsessões do homem continua a ser deixar de ter de se sujeitar aos desmandos do tempo para, ao contrário, subjugá-lo a seu gosto. Para tanto, deveria, antes de mais nada, começar a empenhar todas as suas energias em desenvolver mecanismos e inventos por meio dos quais fosse se tornando cada vez mais corriqueiro o emprego das máquinas no cotidiano, para dar cabo de toda a sorte de demandas. O protagonista de “Tau” (2018) acredita de tal forma que é possível abrir a porta que separa o universo virtual da vida como ela é que devota todo o seu tempo livre e e suas convicções ao projeto — o que o leva, inclusive, a cometer o crime que desencadeia a história. Conhecido por trabalhos em produções da Marvel, o uruguaio Federico D’Alessandro carrega no tom melodramático de seu primeiro filme de mais fôlego, estreia digna de seu talento.
Depois da apresentação meio sucinta demais de Julia, a anti-heroína do roteiro de Noga Landau, a personagem de Maika Monroe é mostrada voltando para casa depois de uma noitada daquelas, mas não exatamente por ser dada a orgias sem hora para acabar: é nos inferninhos de uma grande cidade sem nome que a moça ganha seu dinheiro, poupado para bancar a faculdade de música que ainda pretende fazer. D’Alessandro inspira no público a atmosfera de terror que só volta com toda essa intensidade quando a trama já se encaminha para o desfecho, valendo-se de um incômodo filtro vermelho, acerto da fotografia de Larry Smith. Nesse momento, um corte seco apaga a cena e os olhos excessivamente maquiados de Julia reaparecem num primeiríssimo plano, manifestando um terror mudo à John Carpenter. Logo se esclarece que fora vítima de um sequestro e que agora está num bem vigiado cativeiro na casa de seu algoz, o gênio-psicopata vivido por Ed Skrein.
Thomas Alexander Upton, ou Alex, para seus poucos amigos, criou o que parece ser o mais completo sistema de inteligência artificial que se conhece, e agora precisa das experiências baseadas em interação humana para desvendar as possíveis falhas do software. Essa é a grande ironia mantida pelo diretor a algum custo: a medida que estreitam contato, a prisioneira e o aparelho, dublado com toda a emoção por Gary Oldman, ficam amigos — do jeito como podem sê-lo uma pessoa e um organismo a que até se pode atribuir vida, mas jamais alcançaria a complexidade da alma do homem. A esse propósito, são saborosas as referências do texto de Landau às “crises existenciais” do outro cativo, com destaque para a sequência em Julia tenta lhe explicar o que seria uma pessoa, e que ter um nome não é o bastante para isso.
Resposta bem-humorada e a favor da perpetuação do homo sapiens ao aterrorizante “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland, “Tau”, que deve seu nome à óbvia ideia de dominação da criatura pelo criador, é uma defesa da máquina como uma aliada do homem, quase à guisa de bicho de estimação, fofo e ingênuo. Nem tanto ao céu nem tanto à terra, meus caros.
Filme: Tau
Direção: Federico D’Alessandro
Ano: 2018
Gêneros: Thriller/Ficção científica
Nota: 8/10