Filme “que faz pensar” nunca precisou ser chato. Isso é argumento de algum chato que, não sabendo pensar — tampouco fazer filmes —, tenta justificar sua boçalidade à luz de um reducionismo o mais capenga. Essa categoria, a dos filmes “que fazem pensar” é tão vasta que extrapola o próprio cinema e vai dar na filosofia, e quiçá supere até mesmo a religião, tão claudicante se encontra a fé do cidadão comum num futuro minimamente promissor, desobrigado de trazer em seu bojo a panaceia, o remédio milagroso para todos os males, mas que honre em alguma medida a esperança salvífica do homem em dias um pouco melhores. A humanidade é tão pouco coesa, o homem é tão inconstante, a vida é tão caótica, que, até este momento, há mais de 34 mil igrejas sobre a face da Terra. Ainda que não se possa dizer que cada qual tenha sua própria interpretação para as Escrituras, há aquelas, por óbvio, que tomam a Bíblia de um modo bastante peculiar, muitas vezes distorcendo mesmo o sentido do que vai ali. Esta é só uma pequena mostra do que podemos esperar num hipotético fim do mundo.
A alma de cada homem, em maior ou menor proporção, é dotada de demônios, silenciosos ou estridentes, pacificados ou sempre dispostos a tentar uma próxima cartada. Boa parte do que pode acontecer se Deus, afinal, cansar-se de continuar suportando nossas vãs rebeldias de filhos desobedientes e perversos, que passamos por cima de Sua autoridade apenas para emularmos Seu poder, encontra-se muito bem descrita no “Apocalipse”, o último livro das obras escritas sob inspiração direta. No “Apocalipse”, a pena de São João atenta para pragas e maldições sem precedentes, como dragões cavalgados por demônios horrendos, condições extremas, incompatíveis com a vida, como precipitações que alagam cidades inteiras; períodos de estiagem que matam as criações de calor e sede, disseminando um olor nauseabundo de destruição e morte; nuvens de insetos pantagruélicas, maiores e mais vorazes que leões, que avançando sobre lavouras e casas, lançam à miséria e à inanição milhões de seres humanos em desespero crescente por não terem ideia sobre o que fazer para conter o aniquilamento de tudo.
Leonora e Jacob, o casal que protagoniza “Kadaver” (2020), consideram-se abençoados por terem recebido um convite tão inusitado quanto revelador: comparecer à sessão de um espetáculo em que é levada à cena uma peça na qual a plateia interage com o elenco, tendo a chance de desfrutar de um lauto banquete, o que de fato lhes interessa, uma vez que o planeta atravessa uma fase indizivelmente sombria depois de uma série de conflitos nucleares que arruinaram as menores chances de comer com alguma regularidade. O norueguês Jerand Herdal coloca na boca de Gitte Witt e Thomas Gullestad, seus atores principais, as sentenças perturbadoras e os gestos tantas vezes descoordenados, da gente de um tempo que também é o nosso, no qual todo cuidado com o que se pensa e, principalmente, com a maneira como se reage as incertezas sufocantes do novo cenário podem representar a diferença entre continuar vivo ou sucumbir. Tal como Moisés atravessando o mar Vermelho a fim de salvar seu povo da subjugação dos déspotas de sua época, cada homem e cada mulher cruza seu próprio oceano de aflições, tentando fugir dos demônios que emergiram nessa nova era sombria.
O roteiro enxuto de Herdal não desperdiça nada dos exíguos 86 minutos e logo coloca Alice na história. A filha dos personagens de Witt e Gullestad, vivida por Tuva Olivia Remman — uma das grandes qualidades do filme —, cai na trama meio obliquamente, mas mostra a que veio logo. A menina encarna justamente essa insegurança quanto ao futuro, que o diretor-roteirista torna muito evidente com o emprego de sequências espantosamente ágeis, em que o trio entra e sai das câmaras onde se passam os vários atos do enredo que se conta para uma plateia ávida de pão e circo, nessa ordem, mas iludida quanto à suposta gratuidade de tudo aquilo, um show de horrores entre o burlesco e o fantástico, pelo qual pagam com o que têm de mais precioso.
Filme: Kadaver
Direção: Jerand Herdal
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Terror/Drama
Nota: 8/10