Filme da Netflix fará seu coração saltar pelos olhos enquanto você se contorce no sofá

Filme da Netflix fará seu coração saltar pelos olhos enquanto você se contorce no sofá

Filme “que faz pensar” nunca precisou ser chato. Isso é argumento de algum chato que, não sabendo pensar — tampouco fazer filmes —, tenta justificar sua boçalidade à luz de um reducionismo o mais capenga. Essa categoria, a dos filmes “que fazem pensar” é tão vasta que extrapola o próprio cinema e vai dar na filosofia, e quiçá supere até mesmo a religião, tão claudicante se encontra a fé do cidadão comum num futuro minimamente promissor, desobrigado de trazer em seu bojo a panaceia, o remédio milagroso para todos os males, mas que honre em alguma medida a esperança salvífica do homem em dias um pouco melhores. A humanidade é tão pouco coesa, o homem é tão inconstante, a vida é tão caótica, que, até este momento, há mais de 34 mil igrejas sobre a face da Terra. Ainda que não se possa dizer que cada qual tenha sua própria interpretação para as Escrituras, há aquelas, por óbvio, que tomam a Bíblia de um modo bastante peculiar, muitas vezes distorcendo mesmo o sentido do que vai ali. Esta é só uma pequena mostra do que podemos esperar num hipotético fim do mundo.

A alma de cada homem, em maior ou menor proporção, é dotada de demônios, silenciosos ou estridentes, pacificados ou sempre dispostos a tentar uma próxima cartada. Boa parte do que pode acontecer se Deus, afinal, cansar-se de continuar suportando nossas vãs rebeldias de filhos desobedientes e perversos, que passamos por cima de Sua autoridade apenas para emularmos Seu poder, encontra-se muito bem descrita no “Apocalipse”, o último livro das obras escritas sob inspiração direta. No “Apocalipse”, a pena de São João atenta para pragas e maldições sem precedentes, como dragões cavalgados por demônios horrendos, condições extremas, incompatíveis com a vida, como precipitações que alagam cidades inteiras; períodos de estiagem que matam as criações de calor e sede, disseminando um olor nauseabundo de destruição e morte; nuvens de insetos pantagruélicas, maiores e mais vorazes que leões, que avançando sobre lavouras e casas, lançam à miséria e à inanição milhões de seres humanos em desespero crescente por não terem ideia sobre o que fazer para conter o aniquilamento de tudo.

Leonora e Jacob, o casal que protagoniza “Kadaver” (2020), consideram-se abençoados por terem recebido um convite tão inusitado quanto revelador: comparecer à sessão de um espetáculo em que é levada à cena uma peça na qual a plateia interage com o elenco, tendo a chance de desfrutar de um lauto banquete, o que de fato lhes interessa, uma vez que o planeta atravessa uma fase indizivelmente sombria depois de uma série de conflitos nucleares que arruinaram as menores chances de comer com alguma regularidade. O norueguês Jerand Herdal coloca na boca de Gitte Witt e Thomas Gullestad, seus atores principais, as sentenças perturbadoras e os gestos tantas vezes descoordenados, da gente de um tempo que também é o nosso, no qual todo cuidado com o que se pensa e, principalmente, com a maneira como se reage as incertezas sufocantes do novo cenário podem representar a diferença entre continuar vivo ou sucumbir. Tal como Moisés atravessando o mar Vermelho a fim de salvar seu povo da subjugação dos déspotas de sua época, cada homem e cada mulher cruza seu próprio oceano de aflições, tentando fugir dos demônios que emergiram nessa nova era sombria.

O roteiro enxuto de Herdal não desperdiça nada dos exíguos 86 minutos e logo coloca Alice na história. A filha dos personagens de Witt e Gullestad, vivida por Tuva Olivia Remman — uma das grandes qualidades do filme —, cai na trama meio obliquamente, mas mostra a que veio logo. A menina encarna justamente essa insegurança quanto ao futuro, que o diretor-roteirista torna muito evidente com o emprego de sequências espantosamente ágeis, em que o trio entra e sai das câmaras onde se passam os vários atos do enredo que se conta para uma plateia ávida de pão e circo, nessa ordem, mas iludida quanto à suposta gratuidade de tudo aquilo, um show de horrores entre o burlesco e o fantástico, pelo qual pagam com o que têm de mais precioso.


Filme: Kadaver
Direção: Jerand Herdal
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Terror/Drama
Nota: 8/10