A vida acontece a despeito de todos os planos que fazemos, passa por cima das nossas tolas vontades sem cerimônia e prepara-nos os tantos sobressaltos com que nos deparamos trezentas vezes ao dia, e no outro, no seguinte, até que a areia fina do tempo cesse de escorrer e o que era sólido é tragado pela bruma densa do esquecimento. Antes que tudo se desvaneça e o tempo desista de nós, corremos contra o relógio, certos de que o esforço sobre-humano que fizermos terá a devida recompensa, e cada um sabe muito bem onde é que mais lhe aperta o sapato. Um emprego que corresponda a algumas das nossas expectativas, que reconheça o conhecimento que fomos armazenando ao longo de décadas sem que ninguém nos mandasse; a harmonia sem preço de uma vida espiritual serena, no mundo ou dele retirado, quando se percebe essa necessidade; o prolongamento desse sossego no convívio familiar; e o amor, ah!, o amor, esse gládio afiado que viemos cravando no peito uns dos outros pelos séculos dos séculos.
É impossível afirmar que o amor seja superior à amizade sem que se conheça muito bem a natureza de um e da outra. Há amores que equivalem a amizades, cheios de seus conflitos um tanto infantis, e amizades tão intensas que decerto fazem inveja aos amores descritos acima, que se assemelham muito mais a um joguinho tedioso, de adolescentes imaturos, com a licença do pleonasmo. Faz-se mister que numa noite transcorram cem anos, ou o tempo imprescindível para que se entenda o amor como o mais humano dos sentimentos, epíteto que recebe não sem toda a aflição dos amantes sinceros que o testemunham à custa de boa dose de autossacrifício. Quando essas duas almas compreendem seus próprios limites, as fraquezas que são só suas, o amor vai começando a se tornar possível, justamente porque foi dado o passo inaugural de uma caminhada longa, que em tudo correndo da melhor forma, há de ser consumada na Eternidade.
São vários os enfoques possíveis para se categorizar “Garota do Século 20” (2022), mas o filme da sul-coreana Woo-ri Bang pode ser encarado, antes de mais nada, como uma fábula pós-moderna sobre as relações humanas, seus encontros e suas tantas incongruências. A paixão de uma adolescente por um garoto da mesma idade, conduzida não pelos tradicionais olhos nos olhos — faiscantes e dos quais até escorre uma furtiva lágrima de quando em quando — ou os bilhetes disparados pela imensidão de uma sala de aula banal. A personagem que ganha fôlego aqui é a revolucionária internet, que tomava forma e começava a se massificar naquele distante 1999. Na vanguarda do mundo desde sempre, os povos orientais entenderam logo o valor da tecnologia na vida cotidiana; o que nem eles nem ninguém poderia saber é que ficaríamos tão dependentes de servidores e algoritmos também para mantermos nossos afetos, ainda que aqui o que interessa mesmo é o calor do toque de peles que se atraem e se repelem.
Vira e mexe, diretores do mundo todo decidem que é hora de reviver um determinado assunto, como se se tratasse mesmo de um movimento orquestrado, sob a coordenação óbvia do mercado. A segunda premissa do raciocínio até pode se revestir de alguma verdade, mas evidentemente ninguém fica enviando mensagem por um aplicativo qualquer a fim de especular sobre os próximos trabalhos dos colegas. De todo modo, causa espécie a semelhança semântica entre “Garota do Século 20” e “A Escola do Bem e do Mal” (2022), em que Paul Feig também discorre sobre certa competição afetiva entre duas garotas, e da mesma forma que Bang abusa de efeitos especiais e da fotografia primorosa (e não creditada). Uma passagem lá pelo meio da história, em que as personagens de Kim Yoo-jeong e Han Hyo-ju seguem se arranhando e se lambendo por causa do equívoco que serve de mote ao filme, uma mostra nos devolve à pré-história da comunicação, exibindo pagers, monitores amarelados e telefones de disco. Só isso já vale o filme.
Malgrado o desfecho meio melancólico, o que destoa da nostalgia leve vista ao longo de duas horas, o trabalho de Woo-ri Bang ser mais que só entretenimento. É uma viagem pelo que a alma humana tem de melhor, e pelo pouco que já se conseguiu fazer com isso.
Filme: Garota do Século 20
Direção: Bang Woo-ri
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10