“Sei que já notaram que, quando eu nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, também me veio sussurrar palavras ao pé do ouvido. Só que percebo agora que este texto está ficando longuíssimo, quase uma ‘historia calamitatum’ moral (e não física, por favor, se é que me entendem). Encerro por ora, portanto, e prometo continuar, a quem me acompanhou até aqui, a crônica de minhas desilusões e, creiam-me, de uma efêmera epifania que poderia ter me redimido.”
Assim encerrei, no meu texto anterior, “Corro Jardins”, a primeira parte da crônica das minhas ilusões e desilusões amorosas. Onde parei? Ah, sim, eu estava cursando Direito e mal notara que R. fora invadindo a minha vida, derrubando muralhas e ocupando torreões. Longos anos passei com R.; o futuro traria, assim pensávamos, casamento e filhos, mas sinto hoje que já àquela época eu e ela víamos que havia alguma engrenagem que não funcionava bem no nosso relacionamento. De qualquer modo, depois do amor veio certa bonança: alguns anos de costume e de uma placidez qualquer que nos mantinham ligados. E depois da bonança… Bem, logo chegaremos lá — o fato é que com R. eu soube que a bonança pós-tempestade nem sempre é um bom momento para se viver. O supostamente quieto olho do furacão não deixa de estar rodeado de furacão.
Depois de me formar, continuaram os anos dos namoros mais ou menos longos. Eu me adianto, porém, pois segui com R., acostumado com alguma média entre felicidade e momentos quebra-louça, e então conheci L., que me fez amar intensamente de novo. Por L., eu fui vil: traí R. Durante seis meses, aproximadamente, mantive os dois relacionamentos, porque me sentia na obrigação de cumprir um casamento que prometera. Numa noite, numa única noite, todo o encanto por L. sumiu e voltei a amar R. como a amara nos primeiros meses de namoro; apesar do empenho renovado, entretanto, o que se seguiu não foi outro ciclo de tempestade-de-amor-bonança-tempestade-de-ódio, foi mais como uma etapa de raiva-ódio-aversão. Tivemos a péssima ideia de montar um apartamento, um loft de apenas quatro cômodos, todo moderno e funcional: lá duramos cinco tristes meses. Funcional e moderno era somente o loft, nós mesmos havíamos nos tornados disfuncionais e anacrônicos. Com R., então, fiz um curso completo de amor e seu complemento antagônico, a aversão; e com L. aprendi o que jamais deveria ter aprendido, a ser vil. Mas o que fazer? “E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,/ Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,/ Indesculpavelmente sujo,/ Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,/ Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,/ Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,/ Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante.” Pois fui vil — e tantas vezes reles, tantas vezes porco.
Depois de R., já formado, outra R. (os místicos notarão que R., F. e M. são iniciais que se repetem aqui; pois asseguro que se cuida de coincidência e não de uma espécie de problema psiquiátrico — as minhas questões médicas são outras e nenhuma envolve obsessão por nomes, eu garanto novamente…). R. fez nascer em mim uma força gigantesca para lutar pelo que eu desejava. Insisti, mostrei-me, pavoneei-me (agora um pavão do bem e não aquele pavão do texto anterior). Insisti de novo, argumentei, dispus exércitos em formação de cunha, lutei guerra aberta e fiz também cerco fechado de guerrilha. Algo em mim foi apreciado por R., talvez aquela força durante a luta, mas não sei bem — sei que deu certo. Amamo-nos durante uns três anos. Haveria também um casamento, mas… Nós nos desentendemos e me recordo de alianças de noivado jogadas fora num bueiro. E o que fiz então? Insisti, argumentei, dispus exércitos em formação de cunha, lutei guerra aberta e fiz também cerco fechado de guerrilha. Mostrei-me e me pavoneei. E não nos amamos mais: daí eu desmobilizei as forças e recolhi o armamento. “Never more”, pensamos eu e o corvo; de qualquer modo, se R. se foi, a força que extraio em mim, em momentos de crise, permaneceu. De R., assim, me ficou o conhecimento que tenho de minhas forças internas.
Alianças jogadas num bueiro, acolhi a desilusão total como uma companheira íntima; dito de outro modo: caí na esbórnia. Confesso? Confesso: houve amor pago; houve amor com mulheres que jamais voltei a rever uma única vez, houve… Houve muita coisa de que me envergonho; com o desregramento, eu reaprendi a ter vergonha.
Seguiu-se um estranho rol de ligações muito, muito fugazes. Amigos queriam que eu e D. nos conhecêssemos, aceitamos a empreitada e o previsível desastre ocorreu: foi com D. que eu soube que encontros planejados por terceiros não funcionam. K. foi uma impossibilidade em razão do trabalho; J., uma arquiteta, foi amor de duas semanas; com R. (ainda outra…), estraguei uma antiga amizade por causa de um amor de um mês, amor constrangido porque sabíamos que estávamos matando aquela sincera amizade. Com B., a francesa B., troquei longas cartas; eu, contudo, ainda sofria dores de sentimentos antigos e não cicatrizados e não pude ser a promessa que B. vira em mim. Z. passou e eu mal a entrevi.
W. trouxe-me desejo e ódio: ela quis a mim e depois a um amigo. C. foi a intensidade condensado num curto período: ela me pediu em casamento, e recusar um pedido assim, vocês bem sabem, alteram os bons sentimentos iniciais… G. se mostrou duradoura e capaz de um carinho que às vezes ainda tenta se mostrar; M. foi um erro tão desastroso que só posso crer que passei três meses alcoolizado. R. (sim, parece piada…) foi uma tentativa fracassada; de E. recebi vagas promessas, um beijo longamente esperado e, depois, nada mais.
Com L. tentei sair do redemoinho em que me colocara; o problema era que ela prometia liberdade mas entregava confusão. Ainda assim, ficamos juntos por cerca de um ano, entre idas e vindas. Dela separado, fiz a besteira de procurar M., que eu conhecera por L. e que também havia se separado. Para ser sincero, eu e M. vivemos uma grande banalidade durante cerca de um ano, e M. acabou me provando que Heráclito (Heráclito mesmo?) tem lá a sua cota de razão: nas banalidades da vida, também habitam os deuses. Suas lições, sem embargo, foram além disso; terminamos o relacionamento num dia e, dois dias depois, ela estava com um amigo meu; o amigo se arrependeu e também encerrou o que tinha com ela, seja lá o que fosse. Ali perdi o rumo de casa, duplamente traído que fora; o amigo retomou lentamente sua condição de amigo, apesar de certas reservas que se instalaram entre nós, e dela não tive mais notícias (que tenha sido triplamente traída…).
U., belíssima, pretendia se vingar do namorado desatento. L., marchande, queria apenas vender quadros enquanto se divertia um pouco comigo. Com W., ex-miss e hoje tocando uma carreira acadêmica de sucesso, houve vulcões em erupção; com M., o que nossos corações feridos desejavam não foi encontrado. B. foi o espanto da mulher jovem e de um outro mundo: nela não existia qualquer traço de ciúmes. A. foi amor forte, foram momentos de descoberta e foi um fim anunciado: eu a avisei que chegaria o dia em que ela teria raiva de mim — e o dia veio, impávido que nem Muhammad Ali. Outra A. me trouxe novas camadas de vileza: ela me amava; eu não a amei. Com P. eu não compreendi que ela não buscava diversão, mas sim estabilidade; vejo-a de vez em quando com seu namorado atual, parece feliz e também parece ter algum rancor de mim (ou não: também é possível que ela nem mesmo pense sobre mim e o nosso passado). M.A. lutava artes marciais; o problema era que ela também lutava artes verbais, e isso todas as vezes em que nos víamos. L. e R. foram duas estrelas candentes que logo sumiram. J. trouxe outra face ruim de mim: ela esperava pacientemente e eu telefonava somente em horas mortas, não exatamente saudoso. Com outra B., dois ou três anos de um amor estranho, real em mim e não sei se correspondido por ela. Moramos juntos e me irritei com a sua falta de iniciativa, ela estava num tipo de ano sabático que parecia que iria durar até ela completar 70 anos; brigamos, ela se mudou de cidade e, fico feliz em comunicar ao mundo, encerrou o tal ano sabático (ou os três anos sabáticos, para ser sincero).
Confuso e sem rumo, não percebi S., que poderia ter sido tanto… S. foi uma contradição, muito por minha culpa: amor realizado e não realizado, proximidade e distância, alegria e melancolia, satisfação e frustração. E um grande desencontro: sempre que ela estava solteira, eu não estava; evidentemente, vocês já sabem que há vice-versa nesta frase. O que poderíamos ter sido? Se tudo em nós foi impulso que negou a si mesmo, suspeito que agora jamais o saberemos. Enigma fomos.
Tudo muito bagunçado? Calma: há um propósito neste rol que se revelará na sua terceira parte. É hora de o encerrar, então, ou iniciar o início do fim, digamos assim. Adiante… N. e C. eram atrizes conhecidas, creio que aquilo que me dedicaram veio por eu pouco me lixar para a fama alheia. Por fim, recordo aquelas que conheci no exterior, juntando-as em duas mulheres, digamos, arquetípicas: a italiana e longilínea M. (imito Machado de Assis e posso dizer: M. amou-me durante dois meses e algumas centenas de euros), e a catalã I., que me deu aulas de vadiagem em Blanes, Lloret de Mar, Cadaqués, Sant Feliu e outros tantos lugares de nomes assim evocativos; sobretudo, I. ensinou-me o juramento de fidelidade feito pela Catalunha, na Idade Média, ao monarca espanhol: “Nós, que somos tão bons quanto vós, juramos a vós, que não sois melhor do que nós, aceitar-vos como nosso rei e soberano senhor, contanto que observeis todas as nossas liberdades e leis — do contrário, não”.
No meio de tanto caos, houve ainda negativas várias, aproximações fracassadas, jantares em que fui menos gentil do que deveria e tentativas toscas de amigos para me apresentar alguém: um rol razoável de fracassos, uma lista pequena de acertos. Durante largos anos, então, afirmo que me esqueci do Padre Antônio Vieira, a quem sempre releio: “A alegria verdadeira toda é do interior e das entranhas”. E é melhor encerrar a lista aqui; assim como no livrinho do Otto Guerra, já estou quase escrevendo uma “autopornografia”, não uma autobiografia… Creio que não preciso dizer: toda esta lista aqui representa instantâneos de uma vida levada pelo sabor dos ventos e por uma mínima agência volitiva; se fiz e faço instantâneos (“snapshots”: eis uma palavrinha para a qual não encontro uma tradução tão sonora quanto à palavra original), não posso ter certezas definitivas.
Mas… e se existe no mundo a possibilidade de alguma certeza, ainda que impermanente? Pois meio no susto, sem planos, veio-me uma epifania: chegara assim, eu percebi, o momento de acrescentar sinapses às sístoles — aguardemos, então, a terceira e última parte deste relato para conhecer a famosa epifania.
*Repito a advertência final que fiz na primeira parte deste texto. Li, muitos anos atrás, uma crônica ou um ensaio chamado, penso, “Them”, e com certeza há ecos dele neste meu “Elas”; ou talvez o ensaio fosse em português e fosse também intitulado “Elas”. Como acumulei horas e horas de leituras de ensaios, não o conseguiria localizar hoje; faço aqui, então, esta confissão de influência ou mesmo — será? — de um quase plágio, pois aquele texto não me ficou na memória e dele apenas guardei a sua ideia geral.