Quanto mais nos esforçamos por compreender a alma humana, mais perto chegamos de entender os anseios da humanidade do nosso tempo — e não existe nenhuma garantia de que consigamos tal proeza algum dia. O espírito do homem é como um poço, que armazena as memórias de que se vale nas ocasiões em que, sedento, procura se reconectar à sua verdadeira natureza. Escolhemos do que queremos nos lembrar, e da mesma forma preferimos soterrar registros que não fazem-nos bem, para que sejam resgatados num minucioso trabalho de arqueologia emocional que só a nós mesmos pode caber. As passagens menos felizes vão para debaixo do tapete sem a menor condescendência, e em resposta a esse movimento já procuramos os episódios que merecem realmente ocupar em nós um quinhão de nossas vivências. O ensaísta espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) dissera que a vida é esquecimento, e qualquer pessoa que já tenha enfrentado problemas que julgava sem solução e os venceu, lutou, segue lutando para tirá-los de seu caminho ou desistiu, porque percebeu afinal que eles não demandam tanta preocupação assim, concorda.
Todavia, quando não podemos contar com o que temos de mais nosso e que pensávamos estar sempre disponível, por maiores que fossem os bombardeios que sofremos, algo se ilumina em nós, contrariamente ao que seria mais lógico. Por sentirmos que corremos o risco de perder o domínio sobre nós mesmos, quem somos e o que temos a chance de vir a ser, aflora a vontade de lutarmos por nossa própria história, malgrado tenhamos de enfrentar nossa própria biologia. É uma batalha particularmente difícil, decerto, porém as chances de vitória aumentam sobremaneira se temos clara a importância do que ela representa e se nos acompanha a convicção de que somos nós mesmos os adversários que temos de combater. Uma amnésia provocada por um trauma misterioso vira a maior provação da vida de um sujeito duelando com o que sabe acerca de si próprio em “Blackout” (2022), trabalho engenhoso de Sam Macaroni no qual o diretor esquadrinha as conjunturas que poderiam explicar a queda desse homem num abismo tão profundo, e o porquê de não ser capaz de deixá-lo.
Em “Blackout”, Josh Duhamel tem muito de Charles Bronson (1921-2003). Logo depois da abertura, em que o roteiro da vietnamita-americana Van B. Nguyen mostra Cain, o anti-herói de Duhamel, convalescendo do atentado que lhe provocara as sequelas neuronais de que fala o título, amparado por Anna, a anti-mocinha de Abbie Cornish — que, ao contrário do que ela diz, não é sua esposa —, a narrativa já salta para as cenas de tiroteio e lutas à mão livre que também abundam nas produções lideradas por Bronson e seu indefectível bigode. Encarnando um desejo por reparação que se vai mostrar meio fora de propósito, Cain inicia seu acerto de contas na própria Clínica Sonora em que está internado, no México, até porque nenhuma das figuras que começam a cercá-lo inspira confiança. Eddie, o traficante da pesada vivido por Omar Chaparro, a grande revelação do elenco, faz com que pense que é seu parceiro na DEA, a divisão de narcóticos do Departamento de Justiça dos Estados Unidos; Ethan McCoy, esse, sim, um agente veterano da DEA, papel de Nick Nolte, está metido ate o pescoço com o cartel gerido pelo personagem de Chaparro; e, por fim, até o doutor Garza, o médico que o assiste, de ator não creditado, teria muito a explicar sobre a refinaria de cocaína no porão do hospital se fosse pego.
“Blackout” comete muitos deslizes, maiores ou menores. Para princípio de conversa, Duhamel e Cornish não têm um fiapo sequer de química, e a tentativa de fazê-los parecerem, enfim, um casalzinho de comédia romântica depois dos absurdos todos que passam juntos, é risível. A dada altura da trama, Anna se declara, mas recebe de volta só o silêncio desdenhoso de Cain. Na iminência do desfecho, ele “se lembra” de que a ama também e o beijo que trocam certamente já entrou para a história do cinema como um dos mais desenxabidos (e meio repugnantes) de todos os tempos. Nolte, com todo o respeito por seu Lionel Dobie de “Contos de Nova York” (1989), de Woody Allen, parece congelado, mesmo diante de um par de canos fumegantes; por fim, compete a Chaparro a tentativa de salvar essa lavoura, o que ele até conseguiria, não fosse atropelado por uma pletora de cenas de projéteis traçantes.
Numa conta de padeiro, bravos operários da aurora com os quais tanto me identifico, dos 81 minutos de “Blackout”, ao menos 90% são só essa algaravia de balas zunindo e brutamontes se digladiando. Um defeito intolerável ou uma grande qualidade, se você gosta de tatear pelo escuro.
Filme: Blackout
Direção: Sam Macaroni
Ano: 2022
Gêneros: Aventura/Mistério
Nota: 6/10