Erigimos muitos castelos de ilusão ao longo de uma mesma vida. Embrenhamo-nos pelas sendas estreitas do coração, sem saber direito o que podemos achar ao fim dessa caminhada que extenua e conforta, apenas desejando, ansiando lá no fundo que nossos sonhos se façam verdade ou, pelo menos, sentir que qualquer parte desses projetos, doidos ou medíocres, não se perdeu. Tentando conservar a mente sã diante de tanta preocupação, tanta ansiedade, tanto conflito, o homem se atira as promessas de felicidade que encontra pelo caminho, por mais quimérica que se revele em seus detalhes mais invisíveis. Para burlar as frustrações inescapáveis que decorrem desse processo lamentável, surgem os antidepressivos, ansiolíticos, sedativos, até que nos percebamos outra vez fortes o bastante para enfrentar nova carga de desencanto, sufocante ou até aprazível, e darmos com a cabeça contra a parede — às vezes sem força, às vezes nos ferindo a valer —, tudo só para fazermos com que o ciclo recomece e consigamos ter algum sossego. O direito aos sonhos impossíveis talvez seja a mais básica das reivindicações humanas.
Escalar o olimpo onde habitam os heróis e semideuses do mundo contemporâneo é a aspiração maior de muita gente indiscutivelmente talentosa, mas quase sempre essa jornada se mostra árdua demais. Uma legião de utopistas perece bem antes de atingir seu objetivo de vida, parte dela sem maiores traumas. Essas pessoas são aqueles espíritos privilegiados que conseguem tocar a vida em empregos escandalosamente medíocres, ganhando um salário que lhes veda a mínima chance de colocar em marcha qualquer plano de, mesmo depois de uma eternidade, amealhar dinheiro e sair sem destino, vivendo as aventuras que suas fantasias acumularam desde tenra idade. Contudo, existe uma minoria, silenciosa e algo negligenciada, que simplesmente não vira a página e remói suas decepções pelo tempo que julgarem conveniente, inconformada com possíveis injustiças, mas que não se pode desculpar pelas opções equivocadas que tomam a partir de seu rancor, polidamente mascarado pelo verniz da admiração e de um doentio amor incondicional. Esses fanáticos, como o filme de Fred Durst os vai revelando, estão muitas vezes, longe de agremiações, partidos, clubes e patotas: são os lobos solitários de cidades hostis, os exércitos de um único soldado que perseguem a encarnação de seus desejos atrofiados.
Fred Durst é um polêmico profissional. À frente do Limp Bizkit desde a formação da banda, em 1994, o músico tem se aventurado com relativo sucesso no cinema, e sem dúvida seu trabalho mais exitoso em Hollywood é este “Fanático” (2019), que por seu turno deve muito de seu destaque a John Travolta. Seria um desastre de proporções inestimáveis confiar um enredo como este a um ator um pouco versátil, capaz de personificar de garanhões vorazes, subitamente amansados por uma paixão fulminante — caso de “Grease” (1978), dirigido por Randal Kleiser, que repaginou o ideal de amor juvenil adicionando à equação a doçura angelical de Olivia Newton-John (1948-2022) —, ao antigalã que protagoniza esta trama. Moose, outros dos fracassados que o cinema adora exaltar (não por acaso o roteiro de Durst e David Bekerman situa a narrativa em Los Angeles, que Leah, sua melhor amiga, sua única amiga, vivida por Ana Golja em passagens esporádicas, mas sempre intensas, chama de Cidade dos Mentirosos), deve ter sido um homem minimamente são em algum momento da vida, mas pelo que se depreende do que Leah conta, seus flertes com a loucura vêm de tempos imemoriais. A euforia por um tal Hunter Dunbar, o ator aclamado por filmes B que misturam terror, suspense e ação, além de comédia involuntária, personagem de Devon Sawa, tão inexpressivo quanto o próprio Dunbar, é só o gatilho para uma personalidade agressiva e perigosa, como se assiste com mais ênfase do segundo para o terceiro ato.
Críticos do mundo todo diminuíram o filme e empanaram sua boa condução valendo-se do argumento deliberadamente errado, injusto e nada honesto de que o saldo de “Fanático” foi somente o de achincalhar indivíduos portadores do espectro autista, como seria o caso de Moose. Reitero: se o protagonista de Travolta — que dá ao papel a densidade e os matizes que um personagem como esse demanda — foi autista, isso se deu há muito tempo. A maneira como se comporta, inclusive com Leah depois de merecidamente contrariado, só pode indicar tratar-se de um psicopata típico, a exemplo de Annie, a enfermeira vivida por Kathy Bates em “Louca Obsessão” (1990), de Rob Reiner. Travolta, muito mais do que Bates, molda o personagem a seu talante, absorvendo muito bem a necessidade de se evidenciar essas lacunas no caráter de Moose, como se fosse mesmo uma vítima, tanto que o espectador se pega torcendo por ele em muitas circunstâncias. Nada óbvio, tampouco simplório, o filme de Durst se presta a uma sátira muito perspicaz sobre o cinismo de determinados “artistas”, que de quando em quando têm a infelicidade de topar com certos “fãs”. O mundo cão de Hollywood, aqui com toda a crueza que o assunto pede.
Filme: Fanático
Direção: Fred Durst
Ano: 2019
Gênero: Thriller
Nota: 8/10