Em algum momento dos anos 1930, um casal de judeus senta-se na mesa de sua casa na Alemanha para saborear cerejas e apenas conversar. Não há filhos por perto. O papo rondava por dúvidas filosóficas — ambos haviam sido alunos de Martin Heidegger, o mestre supremo do pensamento na época. Ele se chama Günther Stern (1902-1992), e ela é ninguém menos do que Hannah Arendt (1906-1975). O casamento começara em 1929 e duraria oito anos, havendo o divórcio já na vida de exilados nos Estados Unidos.
Stern tornou-se o conhecido escritor e filósofo Günther Anders, autor do mais clássico estudo sobre Franz Kafka. Ao saber da morte de Hannah, ele decidiu juntar anotações das conversas com a jovem esposa aos 23 anos de idade. Mais alguns anos de lapidação da escrita e saiu o livro de memórias daquelas conversas: “A Batalha das Cerejas — Minha História de Amor com Hannah Arendt”. Para mundo em geral, no entanto, a paixão que prevaleceu foi a relação de uma vida toda de Arendt com Heidegger.
“O cenário das conversas — também isto é absolutamente autêntico — é uma larga mesa de uma pequena e humilde casa de Drewitz, na qual alugávamos um quarto e uma cozinha minúscula. Ainda que Hannah só tivesse 22 ou 23 anos, já havia defendido sua tese sobre Santo Agostinho, uma obra inteiramente independente do ponto de vista intelectual, ainda que estilisticamente bastante obscura. Naquela época, ela era profunda, insolente, alegre, mandona, melancólica, dançarina…; não assumo responsabilidade alguma pelas possíveis contradições de semelhante descrição: sensivelmente, era assim”, diz Anders.
O vilarejo de Drewitz fica próximo a Berlim, onde estava parte da família de Günther — polonês de nascimento. Ele era primo do filósofo Walter Benjamin, por quem Hannah nutria uma amizade profunda e uma relação quase maternal. A tese de Hannah sobre Santo Agostinho definiu o “amor” como um dos pontos centrais em sua obra — o outro assunto seria o “mal”, conforme aponta a biógrafa Ann Heberlein. A cada ano que passa, a obra da filósofa se torna um ponto de referência e, sobretudo, de sensatez.
A reputação de Hannah ganhou dimensão mundial com o livro “Origens do Totalitarismo” (1951), lançada em fase norte-americana. Trata-se de uma interpretação no calor da hora a respeito das origens do nazifascismo, principalmente com foco no antissemitismo nascido na França e nos traços do colonialismo na “solução final” de Hitler. A parte que aborda o comunismo, dizem seus melhores leitores, foi quase toda feita de segunda mão, não tendo o brilho da análise da perseguição aos judeus.
A obra de Hannah se expande consideravelmente, em termos de repercussão pública, com a publicação de “Eichmann em Jerusalém” (1963). Para o horror da comunidade judaica, ela viu o lado humano de Adolf Eichmann, um dos gestores do sistema de campos de concentração. O que chocou meio mundo foi a descoberta da Hannah de que aquele oficial nazista não era um monstro, mas apenas um sujeito que havia parado de pensar. A famosa “banalidade do mal” nada mais é do que a desistência do pensamento.
O “parar de pensar” foi uma formulação desdobrada do pensamento de seu mestre Heidegger, a quem devotou uma paixão amorosa pela vida toda. A relação entre eles é motivo ou tema central para uma infinidade de produtos culturais, como biografias, livros de memórias, coleção de cartas e até romances. Assim, a celebridade de Hannah levou ao ofuscamento da obra de Günther Anders, que é extraordinária e ganha destaque hoje por conta dos desastres contemporâneos (mudanças climáticas, guerra nuclear).
Apenas um livro de Anders saiu no Brasil: “Kafka: pró e contra”, no final dos anos 1960. Quem descobriu essa obra para o público brasileiro foi o crítico Anatol Rosenfeld. A inovação de Günther é a definição do autor de “A metamorfose” como escritor realista. Em sua perspectiva, só uma narrativa antirrealista poderia dar conta da brutalidade do mundo moderno. Despertar de “sonhos intranquilos”, como faz o personagem Gregor Samsa, é na verdade o início do verdadeiro pesadelo da vida.
O interesse de Anders pela era nuclear o levou a conviver com o piloto de avião Claude Eatherly, que ficou encarregado por avaliar os efeitos da bomba lançada em Hiroshima e acabou internado em um hospital psiquiátrico. O encontro resultou num livro no qual investiga o movimento de autoaniquilação do ser humano no século 20. Sabemos que o mundo caminha para a destruição, e mesmo assim continuamos a destruir o planeta, a vida. O homem marcha para um fim, sabendo que é um erro.
“Em 6 de agosto de 1945, o Dia de Hiroshima, uma Nova Era começou: a era em que, a qualquer momento, temos o poder de transformar qualquer lugar do nosso planeta, e até o nosso próprio planeta, em uma Hiroshima. Naquele dia, nos tornamos, ao menos modo negativo, onipotentes; mas na medida em que, por outro lado, podemos ser dizimados a qualquer momento, também nos tornamos totalmente impotentes”, escreveu Anders, em texto clássico Teses para a Era Atômica.
Para Anders, o ser humano caminha para um “tempo do fim”, em que uma mera bomba pode varrer o mundo em questão de segundos e de um aperto de botão: “Dure o quanto durar, mesmo que dure para sempre, essa Era é ‘A Última Era’: pois não há possibilidade alguma que sua ‘differentia specifica’, a possibilidade de nossa auto- extinção, termine jamais — exceto pelo próprio fim”. A bomba atômica pode assumir, no século 21, a forma de um vírus que se alastra pelo planeta sem controle.
Ler as obras de Arendt e Anders parece um ato de sobrevivência, em meio ao milenarismo religioso e ao dogmatismo econômico. Um estalar de dedos pode levar à morte de milhões que, por outro lado, podem simplesmente morrer de forma lenta com a “gestão da vida”. Poucos pensadores conseguiram desvendar os horrores pós-Segunda Guerra Mundial, tal qual fez esse casal de judeus que, na juventude, gastava as horas vagas comendo cerejas numa casa singela e jogando conversa fora.