Das chagas mais purulentas das sociedades ao redor do mundo, o racismo talvez seja a mais resistente a tratamentos de toda ordem, a que mais se adapta às próprias mudanças trazidas pelo passar dos anos e a que menos desperta o interesse genuíno e sincero daqueles que jamais o irão sofrer. Há os homens brancos para quem vidas negras realmente importam, mas na prática, o que se tem é uma espécie de complô, definido pelo silêncio envergonhado dos bons e o barulho acintoso que fazem os que enxergam na necessidade da defesa de pautas identitárias palavras como vitimismo, coitadismo, oportunismo, fraqueza. Ninguém é obrigado a aceitar o que quer que seja sem uma discussão ponderada acerca de todos os aspectos de um assunto naturalmente controverso; o problema é que também essa tentativa de desmistificação de falsas certezas, cristalizadas ao longo de décadas pelos motivos que todos conhecemos bem. Perdem negros, brancos e o amplo espectro entre um e outro grupo, essa, sim, uma maioria que cada vez mais organizada e coesa e que mais facilmente absorve a ideia, elementar e transformadora, de que somos apenas seres humanos.
De onde exatamente vem a crença de que pode haver uma categoria étnica superior a outra é uma resposta que muito provavelmente ninguém arriscaria determinar, mas qualquer indivíduo dotado de alguma razão entende desde tenra idade que essa é uma construção falaciosa, repleta de buracos semióticos, que só consegue se perpetuar graças à má-fé, à ignorância e a um discurso calcado no ódio mais puro, um expediente nada sofisticado, que prospera adubado pela vontade de subjugar, inerente ao homem. É impossível denunciar tudo quanto pode haver de opróbrio nas práticas racistas que continuam a ganhar corpo aonde quer que se vá, mas Deon Taylor faz sua parte. “Cores da Justiça” (2019) é um relato aparentemente banal acerca das situações eivadas de absurdo que o preconceito racial — que vai aos poucos se amalgamando a um detalhe ainda mais pontual — encerra.
Alicia West é uma mulher que encara desafios. Não, a personagem da excelente Naomie Harris não é dada à prática de esportes radicais nem se dedica a hobbies estranhos como sair sem rumo pela noite de Nova Orleans, cenário não muito estimulante para mulheres sérias feito ela. Já nas boas sequências de abertura, West, recém-incorporada aos quadros da polícia da cidade, se flagra às voltas com um reencontro constrangedor. O roteiro de Peter A. Dowling coloca sua protagonista em ronda com o parceiro Kevin Jennings, de Reid Scott, até que os dois param para comprar café, clichê dos clichês nesse gênero de filme — pelo menos dessa vez Dowling não diz nada sobre rosquinhas —, e deixa para que se anuncie alguma possibilidade de arco conflituoso. Não se passa nada de exatamente grave, mas Taylor entende o recado e investe no potencial dramático da cena: West flagra um garoto meio abandonado, talvez sem lar e sem família, junto à sarjeta, manuseando um canivete. A policial faz as perguntas de praxe, quer saber quem é o menino, e nesse meio tempo chega a mãe, Missy, vivida por Nafessa Williams, uma ex-amiga (e, quem sabe, ex-namorada) de West e agora, ao que tudo indica, seu mais novo desafeto.
O expediente na delegacia continua arrastado como de costume, com uma ou outra ocorrência de menor gravidade, exatamente como acontece no mar que, tranquilo demais, prenuncia tempestades furiosas. A protagonista de Harris e seu colega Jennings são mostrados no vestiário. Entra o oficial e diz que o guarda interpretado por Scott terá de cobrir outro tira num trabalho extra, mas, sabendo que West precisa mostrar serviço e fazer uma média, Jennings lamenta o azar, pois tem um encontro com uma mulher. Por óbvio, a novata se oferece e pouco tempo depois está diante da situação mais delicada de sua vida, uma trama que mistura corrupção policial, tráfico de drogas e queima de arquivo conduzida por Terry Malone, o detetive branco da divisão de narcóticos do FBI, papel de Frank Grillo, convincente, mas acomodado. É precisamente Malone — e não os bandidos da gangue de Darius, de Mike Colter — quem personifica a grande ameaça à carreira e à vida de West, suspense que Taylor mantém até a derradeira sequência, enchendo o filme de reviravoltas movimentadas e precisas neste western urbano, um dos melhores da história do cinema recente.
Filme: Cores da Justiça
Direção: Deon Taylor
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Crime/Ação
Nota: 9/10