Perturbador e angustiante, novo suspense da Netflix é aquele tipo de filme que só aparece de vez em quando Ian Routledge / Netflix

Perturbador e angustiante, novo suspense da Netflix é aquele tipo de filme que só aparece de vez em quando

Saiu do terreno das exceções — e mesmo das possibilidades — e tornou-se uma regra, perigosa e cheia de outras implicações colaterais, o envolvimento de agentes da lei em condutas que discrepam de suas atribuições constitucionais, isso para não mencionar as circunstâncias em que esses homens e mulheres são flagrados cometendo delitos tipificados com inequívoca clareza no Código Penal. Essa nobilíssima função das forças de segurança de apartar o joio do trigo, a fim de garantir os preceitos mais elementares vigentes na Carta Magna de qualquer país quanto as liberdades individuais, foi se tornando mero pretexto para o cometimento de crimes que atentam contra a dignidade da pessoa, da mais humilde à mais abastada, gradação que leva algum tempo para se completar, mas termina por arrastar toda uma sociedade para o limbo da insegurança e da paranoia. À medida que policiais houvem por bem integrar uma estrutura corrompida, repleta de vícios irremediáveis, seguimos todos, a passos largos, para a ruína de que nunca mais voltaremos. Por mais sublimes e defensáveis que suas intenções pareçam.

“O Desconhecido” (2022) é um filme singular. Evitando abusar da violência, Thomas M. Wright, o diretor-roteirista, escancara situações do expediente policial que o público leigo nem sonha serem possíveis. Tentando encontrar alguma resposta minimamente sensata que aponte uma justificativa para a degradação moral em que mergulhamos todos há algum tempo, Wright compõe uma narrativa ligeiramente farsesca, entre a sátira e o ensaio, sobre policiais que fazem o que lhes autoriza a lei — ou seja, muito pouco — na intenção de levar a cabo a investigação de um assassinato. Uma vez que se dão conta de que observar todos os ritos legais é, mais do que inútil, contraproducente, um deles em especial aposta a última ficha, numa manobra arriscada que pode redundar em derramamento de sangue, começando pelo seu. O texto de Wright prima pela sutileza, mas nunca se deixa levar pela ambiguidade fácil. Aqui, ninguém fica muito bem no papel de mocinho; entretanto, cada personagem desempenha o papel que dele se espera, sem muita margem para grandes tergiversações.

Daniel Morcombe (1989-2003) ganhou as manchetes de todos os noticiários e as páginas de todos os jornais da Austrália ao desaparecer misteriosamente num ponto de ônibus numa cidadezinha de Queensland, nordeste do país. O que pouca gente sabe é como se chegou à identidade do verdadeiro criminoso, depois de muitas idas e vindas e das tantas reviravoltas características de ocorrências como essa. A história é tão cabeluda que, decerto, mesmo o espectador australiano se perde em meio a um sem fim de detalhes, quiçá o maior calcanhar de Aquiles do trabalho de Wright, um profissional conhecido pelo esmero com que conta suas histórias. O diretor acaba pecando pelo excesso, malgrado receba o socorro de Joel Edgerton a tempo de estancar sangrias maiores. Na pele de Mark, esse policial de aura um tanto messiânica que trata seu suspeito com toda a urbanidade, Edgerton, também envolvido com a produção, fornece algum calor ao enredo, marcado pela frieza de um antagonista que parece ter sido feito para o personagem.

O vasto elenco de “O Desconhecido” poderia ter sido abreviado para a presença de Edgerton e a outra figura imprescindível na trama, a alma do filme. Em muitas passagens, os enquadramentos intimistas, em primeiro plano, de que Wright lança mão exibem um Sean Harris como que congelado por trás de uma barba hirsuta e grisalha — que Mark passa a copiar —, espécie de fera ferida ou pronta para dar novo bote ou estudando o terreno, farejando esse elemento novo em sua vida, já abrindo espaço para a disparada, se necessário. Henry Teague, seu vilão, passaria por um pobre diabo, um sujeito desprezado pelo mundo, patologicamente solitário, não fosse pelo segredo que, no fundo, não aguenta mais guardar só para si. O diretor explora o quanto essa dicotomia tão própria de tipos irremediavelmente perdidos como Teague, propondo um jogo estimulante entre os dois, de que a audiência participa também. Um se lança ao universo do outro, sem rede de apoio por baixo, o que dá a ilusão de que se tornaram amigos e, destarte, o monstro silencioso encarnado por Harris sente-se à vontade para sair da toca e fazer a confissão pela qual todos esperamos. Homens como Teague não são amigos nem de si mesmos, e o modo como manipulara seu algoz todo o tempo é a prova.


Filme: O Desconhecido
Direção: Thomas M. Wright
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.