De Gusttavo Lima a Sérgio Reis: uma profecia a caminho Ilustração / Lucas Mello

De Gusttavo Lima a Sérgio Reis: uma profecia a caminho

Jair Bolsonaro recebeu o apoio formal dos grandes nomes da música sertaneja, atual e recente, no Palácio da Alvorada. Isso é muito simbólico: o ambiente em que estavam. Por um momento, todos se sentaram em um jogo de sofás que mostra ao fundo a ampla biblioteca do palácio, e até deu para entrever, tímida, uma pintura de Alfredo Volpi recortando o espaço de azul. Podia ser uma comunhão do Brasil em sua rica diversidade cultural, mas foi na verdade a ironia de um grupo que nega o próprio cenário. Explicando: este apoio formal veio três dias após o presidente da República dizer que “pintou um clima” com menores venezuelanas, na periferia de Brasília. Nada mais pervertido e grosseiro. Porém, Gusttavo Lima insistiu nas palavras feitas, qual ventríloquo: estava ali por causa de sua “formação”, “valores”, “princípios” e “família”. Muito coerente, né? Naquele cenário, com este “argumento”, foi mais ou menos como assistir uma cena de bárbaros conspurcando a civilização.

Não: não se está dizendo que o equivocado cantor seja bárbaro, nem ele nem esses meninos humildes que venceram na vida! Está-se dizendo que, por boas e más razões, Gustavo e Cia. legitimam os bárbaros. Têm lá seus motivos nem tão razoáveis assim: tornaram-se grandes proprietários rurais — Lula é mesmo comunista? —, e até foi descoberto que o próprio Gusttavo Lima recebia cachês milionários desviados da saúde e da previdência, em municípios paupérrimos do interior. Não é boa prática para quem se coloca “contra ladrões e corruptos” que assaltaram o Brasil. O combate à corrupção podia ser a boa razão para os sertanejos estarem ao lado de Bolsonaro, se de fato Lula foi conivente com a roubalheira de emedebistas, republicanos e peelistas (o mesmíssimo PL de Valdemar da Costa Neto e de Jair Bolsonaro). E também seria boa razão se a famiglia Bolsonaro e o governo Bolsonaro não estivessem chafurdando na lama, a salvo de perturbações graças ao senhor Procurador do Presidente Augusto Aras e ao aparelhamento da PF e demais órgãos de controle, como o Coaf. Todo mundo sabe disso. Os sertanejos sabem muito bem disso.

Assim, Gusttavo Lima e Cia. podem ter os motivos que forem para apoiar Bolsonaro, menos o combate à corrupção. E também menos os “valores familiares”, por óbvio. E, também, menos o interesse pela cultura. Ou alguém acredita, depois da excepcional obra de Sérgio Camargo e Mário Frias, que Bolsonaro tem o mínimo apreço por livros, bibliotecas, Volpi e Palácio da Alvorada? Bolsonaro é a antítese da ilustração e de tudo aquilo que a ilustração — isto é, o saber, o conhecimento — representa. Se os sertanejos o aprovam, idem: tampouco têm apreço por aquele cenário que é um marco civilizatório para o Brasil. Juscelino Kubitschek, neste aspecto, é o extremo oposto de Bolsonaro, embora Kubitschek tenha sido talvez o presidente mais aliado do agronegócio deste os anos 1950. (Impressionante, mas parece que agro brasileiro era mais evoluído há 70 anos!)

Por falar em tradição, é tradição dos sertanejos apoiares regimes autoritários e ditadores, no Brasil. Léo Canhoto e Robertinho é um caso emblemático. Nos anos 1970 a dupla gravou um hit famosíssimo que marcou a infância de muitos que, como este articulista, veio da roça e já conta 50 anos de idade. O hit é “Soldado Sem Farda”, uma música, primeiro, linda, e depois decepcionante, com aquele nefasto “abraço apertado / do homem que agora é nosso presidente”: Garrastazu Médici. Foi o período mais sombrio da ditadura militar no Brasil, com o aumento de prisões, torturas e assassinatos de quem, aliás, só queria ter liberdade para se expressar politicamente. O relatório “Brasil Nunca Mais” calcula que pelos menos 1.918 brasileiros tenham sido torturados por Brilhante Ustra, delegado Fleury e outros ídolos de Bolsonaro, que ainda mataram outros 434 brasileiros. Pura barbárie, da qual esses cantores desinformados parecem ter muita saudade só porque, segundo nossos pais — a maioria analfabetos — era um tempo de “paz e ordem”. Devemos cultuar nossos pais, mas jamais o analfabetismo que os permitiu serem feitos de trouxa.

Por fim, Sérgio Reis tem outra música, também linda, chamada “Disco Voador”, que igual a “Soldado Sem Farda” marcou a saudosa infância de muitos brasileiros. Vista em perspectiva, deveria constranger o cantor. Um trecho da letra diz que “Aqui na terra só se pensa em guerra / Matar o vizinho é nossa intenção”. Sérgio Reis deveria entreouvir-se mais vezes, para relembrar sua lição moral: “Em vez de fabricar remédio / Pra curar o tédio e outras doenças / Inventam armas de Hidrogênio / Usam o seu gênio fabricando bomba”. Tais metáforas refletem condignamente os erros do governo que Sérgio Reis apoia, e que não é nada bom só porque o outro lado é péssimo (pode ser que tenha razão). Por fim, a letra de “Disco Voador” diz o seguinte: “No tempo que Jesus vivia / Ele disse um dia e não foi a esmo: / Quem nesse mundo a maldade infesta / Tudo que não presta morre por si mesmo”.
Vamos ver se, além de cantor, Sérgio Reis também vira profeta, muitíssimo em breve.

J.C. Guimarães

Crítico literário.