Diferente de tudo que você já viu, filme com Adrian Brody e John Malkovich, na Netflix, vai te deixar sem chão Simon Varasano / Saban Film

Diferente de tudo que você já viu, filme com Adrian Brody e John Malkovich, na Netflix, vai te deixar sem chão

Vida de ladrão não é fácil. Depois de levar meses elaborando planos minuciosamente cuidados, acionar os contatos certos para cada fase da empreitada criminosa, disparar umas tantas mensagens ameaçadoras para quem porventura imaginar que pode interditar as ambições da quadrilha, sempre existe o risco de que tudo dê em nada, ou por desídia de algum dos membros da gangue ou porque, num lugar qualquer, uma estrela resolveu apagar-se antes da hora. É prudente contar-se com uma solução alternativa, claro, mas e quando ela simplesmente parece muito menos exequível que tudo quanto já foi tentado, inspirando uma desconfiança literalmente mortal e um medo nada aconselhável, especialmente nesse ramo? As já débeis falsas certezas dessa vida desonrada terminam de se liquefazer e deixam no fundo um travo de amargor — mas nem tão forte que sirva para demover essas figuras do propósito de querer faturar uma grana sem esforço, princípio básico pelo qual o crime se orienta e que faz com que se perpetue.

Expedientes delituosos são constituídos de muitas tentativas e todos os incontáveis erros que dela derivam, até que num dia de felicidade para uns e de desespero para outros tantos, o crime acaba compensando. Por mais que a polícia faça o seu papel e redobre a atenção para condutas ambíguas dos novos candidatos a malandros e dos suspeitos de sempre, a vileza de tipos doentios, todos achacados por alguma psicopatia em maior ou menor intensidade, nunca se esgota. Foi essa a intenção do diretor Paul Solet ao reunir um trio de bandidos numa quadra meio melancólica de suas carreiras. Oscilando propositalmente de trechos mais reflexivos, sobretudo no começo, para as sequências em que a ação dá mesmo o tom, “Bullet Head” (2017) questiona incessantemente as escolhas de seus protagonistas, deixando os possíveis julgamentos para a audiência, que se indigna e se recusa a aceitar o fim da história, precisamente por, no fundo, saber que não há nada de tão fantasioso assim, nem no comportamento daqueles homens e tampouco na maneira como o caso se desenrola.

O roteiro de Solet não tem muito mistério. Stacy, Walker e Gage, os assaltantes caídos em desgraça de Adrien Brody, John Malkovich e Rory Culkin, precisam se abrigar num galpão abandonado depois que não conseguem levar a termo um roubo, graças à afoiteza de Gage, o mais novo deles. O personagem de Culkin, de longe o mais complexo e o mais bem elaborado, vem sofrendo com episódios de abstinência em heroína, uma das razões para que acabassem tendo de abortar a missão sem nenhum cálculo, o que enfurece Stacy, o líder, vivido por Brody. Essa convivência forçada num ambiente claustrofóbico recebe o tratamento estético adequado pelo diretor-roteirista, que opta por tomadas intimistas, marcadas pelo emprego indiscriminado da câmera de mão, mais necessária nas passagens de enfrentamento entre os dois, mas excessiva e mesmo contraproducente em instantes mais amenos, como os que ancoram os diálogos de Stacy e Walker, se destacando o que serve de explicação para o fio condutor do enredo. Flashbacks de uma trama paralela insinuam que os três não estão sozinhos, informação que se confirma quando Blue, o sujeito asqueroso que faz dinheiro promovendo rinhas de cães, vivido por Antonio Banderas, é mostrado abandonando De Niro — homenagem óbvia e justa —, um mastim canário “interpretado” por cinco cães diferentes, gravemente ferido. Num acesso de raiva, De Niro avança contra o preparador, de Ori Pfeffer, e o mata. Stacy, Walker e Gage estão a salvo por terem se isolado num compartimento atrás de uma porta de metal. Mas o cachorro é muito mais esperto do que eles supõem.

“Bullet Head” atinge o ponto alto e chega à intenção que pretendia desde o início com cenas como a da perseguição de De Niro a Stacy, que depois de quase cinco minutos de tensão em escalada, culmina num pátio cheio de carcaças de ônibus escolares, cenário cuja degradação, acentuada pela ótima fotografia de Zoran Popovic em tons granulados de marrom e cinza — que não por acaso lembram a pelagem do cachorro —, não deixa o público esquecer do que se continua a falar. Inconscientemente ou não, Solet se escora nos trabalhos fundamentais de colegas como Tarantino e Barry Levinson, nessa ordem, diminuindo e aumentando a estranheza da narrativa de acordo com a temperatura ambiente. E o espectador nunca se furta a um filme cheio de falsas pistas.


Filme: Bullet Head
Direção: Paul Solet
Ano: 2017
Gêneros: Crime/Thriller
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.