Homo sapiens, este bípede implume, mamífero por condição e pretensioso de nascença, é um animal encantador, que se diferencia de toda bicharada pelo o uso da razão e pelo porte da moralidade. E é ao mesmo tempo um tanto sinistro, exatamente por ser moral e dotado de raciocínio e se negar a usar essas faculdades praticamente exclusivas para se resguardar como espécie, neste momento da história em que toda a fauna humana passeia perigosamente numa frágil e movediça passarela sobre os horrores de um abismo.
Poderíamos dizer que a moral é uma invenção platônica, engendrada a partir das ideias de Sócrates (469-399 a.C.). Do ponto de vista formal, esta atribuição não é de toda descabida, mas, do ponto de vista intuitivo, algumas noções de moral, ainda que de forma rudimentar, sempre estiveram entranhadas na consciência do homem, desde tempos neanderthais.
Para a moralidade platônica nada pode fazer mal a uma pessoa de bem. Alguém que aja com senso de ética, justiça e equidade sempre estará resguardada dos solavancos do mundo. Essa noção foi migrada inteira, sem supressões nem retoques, para o arcabouço do cristianismo, onde foi totalmente absorvida. Quem é bom sempre terá a seu dispor um caminho ladrilhado de pétalas de rosas e um horizonte azul onde abrigar seus sonhos, sempre realizando de forma crescente. Paz na terra aos homens de boa vontade, diz o aforismo deôntico. A contrário senso, quem é mau pagará o preço de sua maldade, do jeito de quem cospe para cima.
Outras religiões de ancestralidade órfica, como o kardecismo, por exemplo, tratam esta questão de forma ampla, abrangente e tranchã: errou, pagou. Não tem escapatória. Não há quem cometa uma besteira impunemente. Ninguém passa por uma situação de perrengue por acaso. A vida é tão somente um balcão de acertos, onde lhe é debitada toda a despesa da vida, seja dos excessos do presente, seja dos excessos de vidas passadas.
Em contrapartida, ninguém usufrui de uma vida augusta sem que seja para receber os créditos pendentes, conquistados num padecimento anterior. Se você veio ao mundo com créditos e bônus, tudo bem; nada deterá sua vocação para ser feliz. No entanto se gastou suas pratas em vidas passadas e ainda deixou a conta da última farra pendurada no cartão de crédito, terá de ralar implacavelmente até o último dia de sua vida, quiçá numa próxima que tiver.
Do ponto de vista moral e ético, Maquiavel (1469-1527) causou um estrago irreparável, com sua obra “O Príncipe”, (obra escrita — dizem — com o intuito de obter alguma sinecura dos poderosos da época) um receituário pragmático de como conquistar e manter o poder, valendo-se da velhacaria, da traição, da perfídia, da audácia e da dissimulação. Um escândalo para qualquer pessoa de bem. Ser príncipe no tempo de Maquiavel era um desejo muito próximo do que é hoje ser celebridade. Talvez não com a mesma disseminação desse desejo de hoje em dia. Na época pouquíssimas pessoas ousavam tanto, mas o suficiente para que guerras pipocassem aqui, ali, acolá e alhures, provocando matanças escabrosas e miséria generalizada.
Hobbes (1588-1679) em “O Leviatã” também não deixou de provocar seus estragos na ética e na moral. Constatou ele que num dos eventos mais recorrentes da história, uma das que recebe maior preparo e investimento é sem dúvida a guerra. E na guerra, bem como no amor e na atividade econômica tudo vale. Principalmente a força e a fraude, que são facilmente percebidos em virtudes.
Para Adam Smith, o mais importante teórico do liberalismo econômico e, digamos, o precursor do capitalismo turbo, este mesmo que está esgotando os recursos da terra numa velocidade vertiginosa, o bem-estar coletivo advém da ação dos defeitos pessoais, como a ganância (empreendedorismo), avareza (poupança), vaidade (consumo). Pode-se destilar desse pensador que a moralidade maior só pode advir de uma acumulação maior de riqueza. Em outras palavras e em bom português, a moralidade só pode florescer onde a imoralidade tiver florescido antes. Exemplo: hoje somos uma sociedade razoavelmente desenvolvida porque nossos antepassados tomaram essas terras dos indígenas.
Do mesmo modo que a moralidade, a razão como virtude, cede a assento do comando à primeira demanda de nossos defeitos. Vejamos dois exemplos bem nossos, de nação tupiniquim. No final dos anos 50 do século passado, os teóricos e planejadores estavam certos de que o nosso desenvolvimento passava inegavelmente pela construção de uma malha ferroviária que cobrisse o Brasil varonil de dimensões continentais. Sobre isso ninguém tinha dúvidas. Não tinha e não tem até hoje. Uma rede ferroviária, num país extenso como o nosso, é tão necessária quanto a presença de ar para os seres vivos de respiração aeróbica. Naquele meado de século, homens e máquinas saíram a campo numa disposição invejável, num alvoroço de formiga de asas. Traçaram rumos, removeram terra, espalharam dormentes e começaram a estirar os trilhos como quem espalha rama de esperança pelos campos do país.
Mas bastou que chegassem os homens da mala e estalassem algumas verdinhas aos faros aguçados de nossos dignos representantes que eles mandaram parar tudo, que o bom agora era estradas de caminhão. Com isso o nosso país retardou sabe-se lá quantas décadas, talvez tenha até moldado um futuro perpétuo de tortuosidade e subserviência, por uma guinada dessas, em que se deixou o caminho do razoável pelo atalho da insanidade do dinheiro fácil.
Temos que lembrar é que não estamos mais na era da inocência em que a natureza passava a mão em nossas cabeças diante de nossas extravagâncias e desrazões imorais. Estamos na passarela bamba sobre o abismo do universo, e um pouco de razão e moral em forma de ética nos faria um enorme bem. Se não quisermos que a riqueza do mundo, os bens naturais convertido em dinheiro, seja a legítima herança dos otários.