A distopia tragicômica de um Brasil imbrochável

A distopia tragicômica de um Brasil imbrochável

O problema de toda distopia é que ela sempre será a utopia de alguém. Muitas pessoas não estão preparadas para discutir isso. É compreensível, considerando que esse tipo de assunto pode abalar estruturas emocionais e intelectuais construídas ao longo de anos ou mesmo décadas. Revelam que não somos tão empáticos quanto pensamos que somos ou gostamos de vender que somos. A melhor forma de ilustrar essa situação inconveniente é partindo de exemplos extremos. Como defendeu Antonio Candido na primeira página de “Literatura e Sociedade”, o exagero por ser uma boa forma de se fazer entender.

Não se enganem, os membros do núcleo duro do partido dominante do romance “1984”, de George Orwell, não eram meros vilões de 007, que queriam “dominar o mundo” por mera vaidade ou porque podiam. Acreditem ou não, aceitem ou não, eles se consideravam ilustrados, iluminados, talvez até messiânicos. Não objetivavam apenas manter seus privilégios e poder. Essa leitura do romance é rasa e contraproducente. Eles realmente acreditavam que estavam construindo o futuro da humanidade, muito provavelmente acreditavam que esse era o único futuro possível. Assumiram o poder mediante uma revolução. A narrativa do livro não trata desse aspecto, mas esses burocratas velhotes um dia foram jovens militantes dispostos a tudo para defender a crença que abraçaram. Devem ter arriscado suas vidas em inúmeras ocasiões, passado por momentos críticos, situações extremas, até conseguirem conquistar a vitória, obtendo como prêmio a possibilidade de moldarem a sociedade segundo suas visões do mundo.

Os Farsantes, de Sergio Raposo
Os Farsantes, de Sergio Raposo (88 páginas)

O resultado foi o odioso e autoritário mundo descrito em “1984”, uma “civilização” baseada na repressão, censura, delação, falsificação da história, destruição da cultura e, sobretudo, no medo como controle social. Contudo, só conseguimos ver a monstruosidade do cenário exposto porque, na condição de leitores, guiados por George Orwell, estamos vendo de fora. Dentro do universo ficcional, àquelas multidões pareciam bastante satisfeitas em seus momentos de catarse na “hora do ódio”. Essa opinião da maioria também é democraticamente válida? O protagonista é uma exceção que confirma ou deveria confirmar a regra? É o ponto cego da regra? Deixo para vocês pensarem. Só não pensem demais para não serem levados para o Ministério do Amor. Sabemos o que acontece lá dentro. O fato é que para os dirigentes, e também para boa parte da população, o medo, a falsificação, a delação, a censura, a destruição da cultura e a repressão não são nada além do que os alicerces do admirável mundo novo que estão construindo juntos.

Por falar nisso, o mesmo vale para o romance “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Diferentemente de “1984”, o controle aqui não se dá pela repressão, mas pela liberação extrema dos sentidos. Anestesiados pelo prazer proporcionado pela mídia e pela liberalização dos costumes, a população, separada em castas, não questiona nada. Vivem em uma dieta de pão, circo e orgasmos. Apesar dos métodos diferentes, até inversos, essa elite dirigente, inspirada em Freud e Ford, também se enxergam como iluminados que estão salvando a humanidade. Talvez até o próprio Aldous Huxley considerasse isso, uma vez que grande parte das concepções apresentadas no livro foram inspiradas em ideias discutidas seriamente nas mais altas esferas governamentais por seu irmão, Julian Sorell Huxley, primeiro diretor-geral da Unesco. Essa dobradinha fraterna foi um dos temas analisados por Michel Houellebecq no romance “Partículas Elementares”. O cinismo de Houellebecq não permitiu que ele caísse em maniqueísmos simplistas. O problema é sempre muito mais complexo do que parece.
Não é muito diferente com outras distopias, como “Nós”, de Evgeni Zamiatin, “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, ou mesmo “Submissão”, do próprio Michel Houellebecq. Há casos tão extremos que, saindo da literatura e indo para cultura pop, já vi muitas pessoas consideradas socialmente respeitáveis defendendo que Thanos tinha razão de exterminar metade da vida do universo. Genocídio em escala universal em nome do equilíbrio ecológico.
Trata-se de um campo minado besuntado pela banha dos porcos da “Revolução dos Bichos”. Um escorregão pode ser fatal. É esse o desafio literário que a novela Os Farsantes, de Sergio Raposo, enfrenta.

Trata-se uma distopia que se passa em um futuro muito, muito próximo. Neste futuro, o atual presidente ganhou as eleições majoritárias de 2022 e, ao final de seu segundo mandato, aplicou um autogolpe, perpetuando-se no poder, literalmente, tornando-se um ditador. O narrador protagonista é um prestigiado homem da mídia e apoiador do governo que, depois de anos usando sua voz para ajudar a criar as “verdades” do regime, é vítima de uma “fake news”, aquilo que antes chamávamos de “mentira”, que o faz cair em desgraça. Para usar uma expressão da moda, é cancelado. Mais uma versão do caso do sujeito que foi devorado pelo monstro de sua própria criação. Diante da queda, o protagonista é obrigado a fazer uma reflexão sobre sua conduta e os caminhos que o levaram até o fundo do poço.
A premissa é interessante e promissora. Sobretudo no atual momento político polarizado que gera excessos de lado a lado. Farsantes não faltam em nossa fauna política, cada qual com sua promessa de utopia. Sergio Raposo, a despeito de ter um lado evidente, não poupa farpas à direita e à esquerda, em inusitados jogos de espelho que podem ou não ser involuntários. Usa clichês para ironizar clichês, abusa de estereótipos para ridicularizar estereótipos autoconscientes, estetiza preconceitos para denunciar preconceitos, preenchendo suas entrelinhas com juízos de valor, sem deixar de ser sarcástico. Sua distopia seria cômica se não fosse trágica.

O livro está disponível na Amazon com preço simbólico. É o tipo de obra que precisa ser lida agora, no calor do momento, só para você ter a chance de bradar em uma futura conversa de bar “eu falei”. Se não acontecer nada do que o livro propõe, fica a opção de mudar o tom da conversa e apregoar acerca “do que escapamos”. Se alguém te contestar, na dúvida, use a boa e velha saída fácil de citar superficialmente o “Paradoxo da Tolerância”, de Karl Popper. Sempre funciona e você não precisa mais pensar no assunto.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.