A polícia foi idealizada como a ferramenta de que o Estado se valeria a fim de reprimir a natureza rebelde do homem, mas, como todos sabemos desde sempre, também a polícia comete seus deslizes. A probabilidade de se constatar que aqueles que têm a obrigação moral e de ofício de resguardar a sociedade se perverteram, seduzidos por promessas vãs de crescimento na própria corporação, prestígio junto a seus superiores e, claro, dinheiro, muito dinheiro, deixou de ser mera hipótese para se incorporar ao cotidiano dos povos faz tempo. É cada vez mais usual ver homens e mulheres da lei que renunciaram a sua função de separar o joio do trigo e preferiram tornar-se parte de uma estrutura degenerada, repleta de vícios insanáveis, rumando a passos largos para a podridão irreversível. Quanto mais isso acontece, menos esperança sobra no fundo da caixa, e haja otimismo para supor que um dia, quem sabe, alguma coisa possa mudar verdadeiramente. Se a fé se esvai, recrudesce a impressão de que a vida perde o significado, de que tudo quanto passa a importar e capacidade que cada um teria de manter o próprio nariz fora da água, convicto de que, por mais que grite, ninguém virá em seu socorro.
É impossível se dizer com precisão o porquê de termos chegado ao ponto crítico em que nos encontramos hoje — muito menos eleger um único motivo principal —; só o que se pode saber sem margem para enganos é que prováveis soluções não caem do azul, feito a chuva de milagres que dá um pouco de alívio a um povo que sofre desde eras imemoriais. Contudo, é forçoso elucubrar conjunturas sobre as quais se alicerçam teses mesmo revolucionárias acerca da debacle da civilização, todas elas ligadas em maior ou menor medida à ruína das forças de segurança. Este certamente foi o intento de Peter Berg em “Troco em Dobro” (2020), espécie de fábula sobre a decomposição das instituições (no caso, as unidades policiais mesmo), solapadas por gente de fora e de dentro, não obstante sempre haja um ou outro abnegado que resista e faça o que o cidadão comum, vulnerável e praticamente indefeso. Furtando-se a conservar-se covardemente isento, Berg aponta as feridas tão próprias das polícias e dos agentes, bem como os temas intrínsecos ao expediente policial, escancarando as chagas daqueles que lidam com criminosos todos os dias (e acabam por se misturar a eles), enquanto também reserva espaço para enaltecer a conduta de quem tenta reequilibrar-se na corda bamba que divide a dignidade do opróbrio. Tudo isso sem abrir mão dos lances picarescos vistos somente em histórias dessa natureza.
O roteiro de Sean O’Keefe e Brian Helgeland toma por base “Robert B. Parker’s Wonderland” (2013), de Ace Atkins, a narrativa épica de um policial pouco versado nas discussões que julga um tanto filosóficas demais sobre moral, impedimentos éticos ou a necessidade de se observar regras e a própria lei, o que termina por fazê-lo amargar uma longa temporada na cadeia. Quando é afinal libertado, depois de ter de se sujeitar a humilhações e sevícias que seriam no mínimo traumáticas para qualquer um, Spenser, o protagonista encarnado por Mark Wahlberg, faz de Boston seu imenso quintal, exatamente como antes. Berg situa o espectador na mente tortuosa do personagem, rememorando os episódios de violência que o levaram a se perder, como ter espancado o comandante de sua companhia por suspeitar que ele surrasse a esposa. Wahlberg consegue o ponto certo para Spenser, evocando uma irresponsabilidade meio juvenil, completamente fora de propósito num homem já na meia-idade. Contudo, esse é seu grande charme, quiçá o único, mormente quando a trama embica para o comentário político e expõe as taras progressista de Spenser, um assumido perseguidor de tiras brancos que se fazem notar pela intolerância a pretos e mestiços.
Esse Batman caído em desgraça tem seu Robin, negro, e até o mordomo Alfred, que se encarregava das tarefas mais comezinhas e urgentes, como cuidar de Pérola, a beagle idosa, enquanto permanecesse na cadeia. A analogia cirúrgica é da Mulher-Gato, digo, de Cissy, a ex-namorada com quem passa a ter revivals cada vez mais frequentes, respiro cômico providencial de Iliza Shlesinger. Hawk, esse escudeiro igualmente gauche, de Winston Duke, é um tipo tão mais cheio de problemas que é seria o caso de se perguntar como ele pôde resistiu, questionamento que perde a razão de ser quando Duke principia a elaborar seu personagem, composição refinada, devotadamente avessa aos estereótipos do negro como um rebelde por excelência, tanto mais insinuantes num homem de quase dois metros. Ao contrário de Spenser, Hawk é suave, como se depreende da linda sequência em que ajuda o filho de Letitia, interpretada por Hope Olaide Wilson, a viúva de um policial negro assassinado por gângsteres, a colocar a cama no lugar depois de uma revista pouco civilizada na casa em que moram. Os momentos em que Alan Arkin entra em cena são sempre circundados por alguma ternura e algumas passagens de humor involuntário, tônica que se mantém até o último quadro, de um final feliz artificial, mas perfeito, ajudado, por óbvio pela estética — clichê, mas toda lirismo — adotada pelo diretor.
Filme: Troco em Dobro
Direção: Peter Berg
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Mistério/Drama/Crime
Nota: 8/10