Suspense psicológico com Sandra Bullock, na Netflix, é um quebra-cabeça que fará você se contorcer no sofá TFM Distribution

Suspense psicológico com Sandra Bullock, na Netflix, é um quebra-cabeça que fará você se contorcer no sofá

Pode ser redundante, óbvio até, mas o amor é mesmo ridículo, como alega o poeta luso Fernando Pessoa (1888-1935). Tanto pior se, obedecendo a um dos tantos arroubos do envolvimento amoroso, os amantes decidem que é chegada a hora de exibir ao mundo sua felicidade e declarar publicamente que estão juntos, sem margem para equívocos. Imediatamente, como já se imaginaria acontecer, vão surgindo complicações de toda ordem — apuros de dinheiro, enfermidades do corpo e do espírito, turbulências profissionais —, que se julga sempre administráveis em resistindo o mais humano dos sentimentos. A vida como ela é, contudo, logo se encarrega de mostrar que nada é tão banal assim, que mesmo a constatação de que aqueles dois indivíduos, completamente diversos um do outro, cada qual com a sua personalidade, suas demandas e experiências, não podem ficar longe um do outro, não basta. Nesse ponto, passa a valer outra máxima, cunhada por Vinicius de Moraes (1913-1980), gênio e um especialista no assunto. Disse muito bem o Poetinha em seu “Soneto de Fidelidade” (1946) que o amor, em sendo chama, não pode ser imortal, mas pode ser infinito até quando os enamorados se amarem.

Os incontáveis embaraços da vida a dois não raro degringolam em paranoias que por seu turno remetem a psicopatias de maior ou menor gravidade, que as aprazíveis conversas de travesseiro nem sempre resolvem. Mennan Yapo até poderia se vender como um guru para relacionamentos falidos, ou coach emocional, na linguagem marqueteira e vigarista que pulula nas redes sociais hoje. Quinze anos nos separam de “Premonições”, mas o mote central do filme do turco-alemão segue hodierno como nunca. Pinçando situações bastante peculiares do roteiro de Bill Kelly, o diretor dá voz a um casal nada ordinário, inclusive no que diz respeito à paixão de uma pelo outro, nessa ordem. Uma esposa dedicada, ainda apaixonada pelo marido, mas algo enfarada (e exausta), fica à beira do colapso ao se deparar com uma situação de negligência e abandono, conjuntura que, de pouco em pouco, a domina e arrasta para o centro de uma cornucópia de delírios — que podem ser muito mais que isso.

Linda Hanson, essa mulher atormentada pelo que deveria ser um dom que a fizesse multimilionária ou ao menos não a atrapalhasse em sua vida prática, é apresentada pouco antes de tomar posse de sua maior conquista — na verdade, nem tão sua como parece. Quando da estreia de “Premonições”, em 2007, Sandra Bullock já era a celebridade responsável por encher cinemas com besteiróis e pastelões do naipe de Miss Simpatia (2000), dirigido por Donald Petrie, ou thrillers meio cansativos a exemplo de “Velocidade Máxima” (1994), de Jan de Bont, mas estava longe, muito longe de ostentar o status de atriz dita séria, provado e ratificado em trabalhos que lhe exigiram composições sofisticadas, como “Um Sonho Possível” (2009), levado à tela por John Lee Hancock, ou o pesadíssimo “Imperdoável” (2021), de Nora Fingscheidt. Aqui, Bullock começa a transição, emprestando a Linda a sensibilidade que já tinha, e que Yapo lhe arranca sem anestesia. A protagonista, num casamento aparentemente sem percalços (e morno) com Jim, de Julian McMahon, passa a ser vítima de sua própria capacidade de enxergar o óbvio, disfarçado de fenomênico. Uma sequência em que Linda e Jim estão deitados, entre o primeiro e o segundo atos, de quase nenhuma palavra, praticamente toda feita de close-ups dos olhares vívidos da estrela, boa sacada de Kelly mantida pelo diretor, explica boa parte do que se segue.

Yapo faz a narrativa ir e vir no tempo, furtando-se a entregar o jogo de uma vez e saciar a curiosidade da audiência, a essa altura já deveras apreensiva, quanto ao mistério que dá azo à trama. Em vez disso, acrescenta coadjuvantes, chamados à cena individualmente, a fim de recrudescer o suspense. A atmosfera de neurastenia de Linda alcança o público, que começa a duvidar da sanidade da personagem de Bullock ao passo que também questiona a frieza um tanto calculada com que Joanne, a mãe da protagonista vivida por Kate Nelligan, ou o pragmatismo apurado de Annie, a melhor amiga, papel de Nia Long.

Numa excelente passagem no cemitério, em que Torsten Lipstock destaca atores e figurantes de preto em distinção à luz acintosa de um sol de primavera, surge o vulto de uma mulher, cuja identidade Linda descobre algum tempo mais tarde. Claire, a quase amante de Jim, de Amber Valletta, poderia ser o desfecho perfeito se “Premonições” fosse um filme ligeiro. Mas, outra vez, nem tudo é o que parece.


Filme: Premonições
Direção: Mennan Yapo
Ano: 2007
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.