Um dos mais belos filmes do cinema brasileiro está na Netflix Divulgação / Downtown Filmes

Um dos mais belos filmes do cinema brasileiro está na Netflix

Estamos todos à procura de nosso lugar no mundo, a maioria com todos os atravancos, dando com a cara na porta e quebrando a cabeça até ou serem aceitos ou se persuadirem de que alguma coisa definitivamente não se encaixa e é mister continuar essa busca noutra parte. Frequentemente, chega-se a tal entendimento não sem muita dor e depois de um tempo impressionantemente longo, mas há as situações em que, mantidos o pesar e a angústia, o tempo colabora e, feito se fosse uma tormenta de dimensões sobrenaturais que cede como que por encanto ao cabo de horas e horas de terror, alguma solução começa a se desenhar no horizonte. Exercitando uma confiança na vida que beira o desespero, o homem se deixa guiar por esses sinais, convicto de que os dias de busca e de dúvida estão em seus estertores e, então, merecidamente, virá não o final feliz dos contos de fadas, mas um recomeço, árduo, como todo recomeço, mas igualmente cheio de possibilidades. E malgrado a prudência recomende poupar a alegria e não cantar vitória antes de tudo muito bem amarrado, o peito se enche daquele sentimento sem nome, mas que qualquer um é capaz de identificar tão logo o sinta, e a vontade de se dizer feliz é simplesmente incontrolável.

Os horrores de uma guerra, a esperança de um homem, as memórias de uma época particularmente difícil para a humanidade, esses são alguns dos elementos para que “Tempos de Paz” (2009) chama a atenção, acendendo no público as fogueiras que vai alimentando com desvelo. Aqui, Daniel Filho, um dos diretores mais experimentados da televisão brasileira e com passagens memoráveis pelo cinema no papel de ator e produtor, se esmera ao adaptar para a tela grande o texto do dramaturgo Bosco Brasil, responsável pelo roteiro, e consegue extrair dele a poesia refinada já vista nos palcos do país inteiro, em sessões disputadas por uma gente conhecida por não gostar de teatro. Pois de “Novas Diretrizes em Tempos de Paz”, nome da peça de Brasil, gostaram e o sucesso do espetáculo, claro, foi uma das grandes motivações de Daniel Filho, artista, mas também um homem de negócios.

O trabalho do autor-roteirista veio a público pela primeira vez em 2001, como livro, encenada no ano seguinte e filmada apenas sete anos depois. A trama, formulaica, é mais uma a integrar o vasto rol de enredos que versam sobre os desdobramentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ao longo dos seis excruciantes anos pelos quais se estenderam os conflitos e algum tempo mais tarde. Neste caso, Brasil centra a ação em 8 de maio de 1945, oito dias depois do suicídio de Adolf Hitler (1889-1945), o Dia da Vitória dos Aliados sobre o Eixo, rendido. Vindo da Europa com destino às ilhas Falklands, arquipélago de domínio britânico no litoral da Argentina. Na parada no Brasil, Clausewitz desembarca nesse novo mundo a um só tempo obscuro e fascinante, ansiando por esquecer todo o horror vivido na sua Polônia natal. Retrato da desilusão em seus detalhes mais comezinhos, o ator que passa a se dizer agricultor por achar não serem mais possíveis o sonho ou mesmo a imitação de tragédias tão pungentes quanto as achadas nos campos de batalha, é mandado ao escritório de Segismundo, o burocrata da ditadura Getúlio Vargas (1882-1954) responsável por despachar o salvo-conduto ou condenar o candidato a novo habitante do Brasil, com os poucos direitos e inúmeros deveres que essa condição encerra, a ver o sonho de uma vida menos atribulada ir ao chão.

Dan Stulbach tem, afinal, a grande chance de se provar um ator para além dos estereótipos maniqueístas da televisão, com personagens como um sujeito que espanca a mulher, irado depois de um casamento sem remédio, ou o chef de cozinha meio idiota, que começa e acaba uma novela de quase um ano sem dizer a que veio. Seu Clausewitz, que ironicamente tem o mesmo patronímico do teórico da guerra por excelência, é a própria encarnação da poesia e do lirismo num mundo bestializado ao termo de anos de violência sistemática e injustificável, ávido por reaprender a arte da delicadeza. Dizendo um dos melhores monólogos da história do cinema — o auge de “A Vida É Sonho”, do espanhol Pedro Calderón de la Barca (1600-81) — a interpretação de Stulbach eclipsa por completo o Segismundo de Tony Ramos, que generoso, serve como uma escada de primeira e conforma com o posto de coadjuvante de luxo. A tabelinha perfeita para o protagonista, corintiano roxo, matar no peito e liquidar a fatura ali mesmo.


Filme: Tempos de Paz
Direção: Daniel Filho
Ano: 2009
Gênero: Drama/Reconstituição histórica
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.