Filme com Robert Pattinson na Netflix vai tirar seu sono Divulgação / Samuel Goldwyn

Filme com Robert Pattinson na Netflix vai tirar seu sono

Tão certo quanto o sol se levantar todo santo dia, ainda que encoberto por grossas nuvens, é trazer consigo novas e inesperadas angústias, talvez menos urgentes que ontem ou anteontem, mas cheias da sua própria relevância. Naturalmente, há circunstâncias em que estamos mais dispostos a encarar cada um desses grandes e pequenos desafios, ao passo que também se nos assaltam as ocasiões em que nossas forças, aquelas mais íntimas, justamente as que pensávamos não nos abandonar nunca, somem-nos, e fracassamos miseravelmente. Recolhemo-nos a um lugar isolado, onde sempre existe alguém por nos observar, acreditando que a qualquer momento se vai consubstanciar o espírito capaz de fazer com que tudo que era morto se renove e torne à vida, malgrado não saibamos — e nem queiramos — acatar mudanças, mesmo as que clamam por virem à superfície, emergindo do mais fundo e absconso de nossa essência. Delegar o enfrentamento desses perigos tão nossos a um salvador qualquer é um dos enganos da natureza humana, quiçá o maior, o único que pode verdadeiramente nos aniquilar sem nenhuma ilusão de pena.

Alguns dos empecilhos da vida em sociedade vêm sob a forma de metáforas cuidadosamente trabalhadas em “Esperando os Bárbaros” (2019), discurso límpido em defesa da democracia e das liberdades individuais, malgrado ressalte que fazer essa engrenagem rodar nunca seja tão simples assim. O colombiano Ciro Guerra se ampara no texto de um gigante a fim de encampar as teses que considera fundamentais para o bom entendimento entre os povos. “À Espera dos Bárbaros” (1980), do sul-africano J.M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura de 2003, versa sobre os arroubos totalitários de um poderoso em contraposição à atividade de um juiz justo, que não se intimida diante de abusos e vitupérios de toda natureza, até que acusa o golpe. Faz-se necessário um pequeno guia a fim de não se perder nada do roteiro do próprio escritor, um texto sem dúvida controverso e até hermético, mas esclarecedor e preciso em igual medida.

Mark Rylance e Johnny Depp estão em campos opostos de uma batalha silenciosa. O magistrado vivido por Rylance, responsável pela gestão de uma colônia do Reino Unido em algum lugar que poderia ficar na África ou na Oceania, é surpreendido pela visita do coronel Joll de Depp, estiloso e talvez envergando seu melhor figurino. Ele está quase irreconhecível na pele desse candidato a tirano, providencialmente coberto pela farda negra do exército britânico, além, claro, dos óculos escuros que causariam inveja a Cartola (1908-1980) ou Karl Lagerfeld (1933-2019) — “são para proteger da claridade e manter a pele sem rugas”, explica o coronel ao personagem de Rylance, este entre atônito e meio deslumbrado. As amenidades de parte à parte se entendem um pouco ainda, mas findam logo; Joll foi enviado pelo monarca para se inteirar acerca dos métodos do juiz, de quem se desconfia de uma leniência excessiva para com os nômades, os bárbaros do título, uma gente belicosa, mas com quem o magistrado trava boas relações. Essa lua de mel está prestes a ser interrompida, contudo, graças a visão de mundo nada humanista do alto oficial, disposto a lançar mão de linchamentos morais e tortura física a fim de obter o que deseja: conservar o domínio da área e a hegemonia política sobre os bárbaros, batendo de frente com o expediente pacífico adotado até então.

A estima do magistrado por esse bravo povo desvalido torna-se, primeiro, razão de mofa, logo acompanhada de episódios de violência desabrida, quando o juiz se compadece da desconhecida que lhe bate à porta. A moça bárbara interpretada por Gana Bayarsaikhan — em franca evolução desde a ginoide de “Ex Machina: Instinto Artificial” (2014), levado à tela por Alex Garland —, cega depois de sevícias perpetradas pelos soldados do Império, escapa da mendicância com a ajuda do protagonista, e se insinua um romance entre os dois. Nada extrapola o meramente platônico, delicadeza do texto de Coetzee que Guerra faz questão de realçar, embora o subalterno interpretado por Robert Pattinson redobre a animosidade contra o esse filantropo, que nunca se arrepende de sua bondade inútil num tempo em que só a guerra tem valor.


Filme: Esperando os Bárbaros
Direção: Ciro Guerra
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Ação
Nota: 8/10