Corro jardins alheios, naquele tempo antigo de muros baixos, e recolho flores que vou juntando num balde ou numa espécie de pequena bacia: eis uma das primeiras imagens de que me recordo. As flores eram para S., nossa vizinha; S. tinha — quantos? — 20 ou 30 anos; eu deveria ter uns 5, talvez, mas não mais que 6 frágeis anos. S. aceitou as flores, disse-me algo que se perdeu nos porões da minha mente hoje já tão embaralhada e, com certeza sem imaginar o tsunami que ali criava e que reverbaria pelas décadas seguintes, ensinou-me a ser ousado. S. foi a primeira mulher a quem me senti grato, mesmo eu não sabendo, menino de calças curtas, o que significava ter gratidão.
Com M. acertei a idade, tínhamos provavelmente cerca de 12 anos, e 12 anos eram, então, o equivalente a 8 anos hoje, tão sem informações vivíamos. M. era também nossa vizinha, mas, naquele tempo antigo de muros baixos, existiam ainda altos muros separando garotos e garotas; nós raramente nos misturávamos, a não ser nas pouquíssimas ocasiões obrigatórias — por exemplo, para formar pares nas festas juninas (sempre errados!) —, e M. nunca passou de um desejo inatingível. M me retirou a ousadia que eu ganhara com S.
Com G., outra vizinha — o meu raio de ação se resumia ao colégio em que estudava e às ruas do meu bairro —, voltei a mirar na idade errada. Aqui a memória perde muito da sua linearidade, pois não sei bem quando G. surgiu na nossa rua. Vinha de São Paulo e formava um par belíssimo com sua irmã A. Nós, a meninada que passava o dia bestando na rua, nos encantamos com os adicionais que faltavam às outras garotas do meu Setor Sul: eram “estrangeiras” e tinham um sotaque mais forte do que o nosso, aquele do interior paulista, sotaque que supera o acento dos goianos e mineiros (com o “r” puxado ao extremo; creio que se diz “r retroflexo”, mas não vou conferir). G. namorava outro vizinho, evidentemente de idade próxima à dela; G. mostrou-me que as dores do coração se sentem também como dores quase físicas, tão fundo pode ser o buraco que elas cavam em nosso peito.
Como que obedecendo a uma estranha alternância de idades impossíveis com outras mais razoáveis, chegou a vez de L., cujos dentes brilhavam — é mesmo estranho o que a memória guarda: ouço “dentes” e logo me recordo de L., como se ela, pobrezinha, se resumisse apenas a uma arcada dentária. Pois L. morava numa casa que dava sua frente para outra rua; eu, contudo, conseguia a enxergar do telhado da minha própria casa — ela nunca soube da minha existência, creio. Sozinho em casa, eu abria os janelões para que ela ouvisse LPs que eu tocava no volume máximo, tentando mostrar àqueles dentes alvíssimos que o garoto que habitava a casa dos janelões escancarados se destacava pelo gosto musical — os muitos minutos de “Faroeste Caboclo”, digamos. Expunha-me, assim, como um tipo bem diferente dos “bobões” com quem eu andava, mesmo não o sendo (perdoem-me, amigos da minha infância). Do meu telhado, algumas vezes flagrei L. tomando banho em sua casa, lembro-me disso agora (e eu aqui pensando em dentes, vá entender). Foi com L. que apreendi como podemos ser ridículos quando, gostando de alguém, deixamos o nosso pavão interno aflorar, sem contar que ela também quase me fez quebrar uma perna, caminhando sobre telhas não muito firmes, por causa de sensações que eu não compreendia bem quando a olhava sob o chuveiro. Que os banhos de L. continuem alegres como eram décadas atrás, eu espero.
Numa das casas da mesma rua, havia uma família com várias filhas, entre elas B., a quem eu tentava impressionar empurrando em poças de lama, dando nela tapas ruidosos e imitando sua voz. Tínhamos embates físicos e, assim, contatos de pele; B. foi, então, talvez a primeira a me apontar a existência de um mecanismo físico qualquer em mim, mecanismo cujas peculiaridades eu apenas intuía. Obrigado, B. — que sua vida tenha sido leve.
T. saía pouco de casa, não sei bem o motivo. Foi mais uma das meninas que povoaram a minha infância, de resto também habitada quase somente por mulheres: os homens das nossas famílias saiam cedo de casa, carregando pastas e papéis, e retornavam à tarde, exauridos e transformados em seres irritadiços e de pouca conversa. As mulheres — mães, tias, avós e toda uma parentela difusa — nos espiavam por frestas de cortinas e mantinham uma intensa comunicação com as vizinhas. Pensávamo-nos livres, soltos que vivíamos em vielas e ruas sem saída, mas era uma liberdade permitida sob disfarces. E a fugidia T.? T., como escrevi, não colocava os seus pés graciosos, calçados com sandálias Melissa, na rua: era inacessível. Um dia, porém, a vimos ir dormir menina; no outro dia, milagrosamente, ela amanheceu adolescente, com os atributos próprios de uma adolescente. Mudou e passou a sair de sua casa; nós vimos o fenômeno e não o compreendemos: a partir daquele dia, o fato é que a discórdia se inseriu entre nós e brigávamos ferozmente por coisas como faltas em jogos de futebol de rua ou a maneira correta de contar até cem em brincadeiras de pique-esconde. Como T. passou a sair mais de casa — ela, obviamente, decifrou o motivo da balbúrdia que se instalara entre nós —, partíamos para socos e murros tão logo pressentíamos sua presença, ela sendo a espectadora privilegiada daquela pré-adolescente babel. T. foi para mim um lado meu animalesco e atávico querendo subjugar o que jamais conseguiremos ou deveríamos tentar subjugar. T. foi o primeiro amor com gosto metálico de sangue; metal na boca, metal em minha alma.
Os fracassos da rua em que eu morava se repetiram no colégio — éramos uns garotões inúteis, mesmo com 14 ou 15 anos, algo também bastante diferente do que hoje acontece. Assim, no período que chamávamos de ginásio, a partir da 5ª série, parece que o meu foco mudou para ser aceito por amigos. Ainda assim, houve L. e o lusco-fusco que foi R., aquela que se foi cedo demais (obrigado por tudo, R., você que também foi umas das minhas primeiras mortes e com quem ainda entendi, pelo seu sacrifício em idade tão jovem, que ao pó voltaremos). Mais algumas outras passaram pelo meu radar defeituoso, é certo; ocorre que o meu esforço mental e o meu coração, contudo, não estavam direcionados a elas: eu queria ser “mau”, desejava tirar notas ruins, lutava para aprender a jogar sinuca e fingia que tolerava álcool e cigarros.
No segundo grau (atual ensino médio, meninada), já forjados pelas informações que recolhíamos, sôfregos, em conversas com amigos e em outras entreouvidas dos adultos, eu e meus companheiros de geração tínhamos, por assim dizer, mais poder de luta. Ou antes, tínhamos mais esperança de sucesso, para ser exato, esperança que não se cumpria em oito ou nove de cada dez tentativas. Mas ao menos tentávamos. Primeiro, conheci P., que deixava recados escritos nos meus cadernos e tinha olhos verdes quase líquidos. Sentávamos muito próximos na sala de aula e eu, já escolado pela estranheza que causava — magro, com uma memória que eu usaria muitas vezes para impressionar outras pessoas e tendo optado por ser um mau aluno (mas não tanto…) —, espantei-me: era comigo? Era comigo, pois não. Ficamos um ano inteiro numa espécie de jogo amoroso que não nos levou a nada; P. descobriu o primo de um colega de classe e me mostrou a flecha envenenada do ciúme. Trinta anos depois, por causa das maravilhas das redes sociais, os líquidos olhos verdes ressurgiram: sim, estivemos juntos, mas não reencontramos os jovens que fomos e, além do ciúme que já me proporcionara antes, P. acabou por reforçar em mim a ideia de que todo o tempo perdido em amor é um dos grandes erros que podemos cometer na vida. Com ela fui um enciumado Otelo (ou Iago?) e um esperançoso Godot, aguardando algo que jamais se materializou como antecipado.
Eu e E. nunca estudamos na mesma turma, mas ela vinha me visitar nos intervalos das aulas e, nos recreios (ainda se fala “recreio”?), estávamos quase sempre juntos. Infantilizei-me de novo, porque gostava dela e sentia reciprocidade, mas continuava tendo gestos toscos (e talvez ainda não os tenha perdido); se a epiderme era a de um adolescente, o tônus costumava regredir, muitas vezes, aos 10 anos. Era bom, na verdade; E. foi a lição necessária sobre não se levar muito a sério e tentar ter leveza nos jogos de amor.
Com R. foi namoro sério (namoro de adolescente, bem entendido). Ela me enviava cartas, eu furtava algumas linhas de escritores famosos e as mostrava a ela, claro que assumindo sua autoria. Não sei bem o motivo, mas ela se dizia minha prima distante, o que não parecia verdadeiro, e isso facilitou os trâmites burocráticos para que eu fosse recebido por sua mãe (não me recordo de um pai), umas duas ou três vezes, bolos e refrigerantes à mesa. R. me mostrou o valor da conquista diária (sim, desaprendemos e reaprendemos isso durante toda a vida). Terá sido feliz, aquela R. de longas cartas escritas para me ganhar aos poucos?
Amei F., uma sansei cuja beleza me doía na alma, com todas as forças de um adolescente sem obrigações para ocupar a mente. F. também me quis, mas era irmã de um amigo que não deixava nunca de a vigiar. Há aqui em casa uma fotografia, perdida em algum lugar, em que eu e F. estamos rindo muito, felizes, felizes como poucas vezes se pode ser. F. seria uma lição futura: mesmo os grandes amores morrem (ou se acumulam e podem renascer?). Haverá de ter sido feliz e realizada, a minha sansei de olhos puxados.
Se Jep Gambardella, em “A Grande Beleza”, pergunta a uma mulher qualquer se eles já namoraram (a pergunta é mais íntima, mais estou vigilante para não assustar a turma jovem que porventura esteja me lendo…), eu, caso reencontre H., terei de perguntar a ela o que fomos ou tivemos. H., portanto, provaria ser outra lição que eu apenas compreenderia depois de a perder de vista: perdermos, pois, as pessoas de vista e também perdemos de vista o que algumas mulheres foram para nós (há reciprocidade para elas, por evidente).
Na mesma época, o meu raio de ação foi ampliado: conquistei as ruas em que os amigos moravam, mas com igual grau de erros e acertos no amor. Era o período em que “ficávamos”: beijos e mãos bobas — mas não muito bobas, pois muros altos não se destroem com facilidade. Momentos fugazes que não passavam de uma noite e depois continuavam como relatos exagerados de pequenos homens ainda em construção ou como piadas de outros homens também em construção, com nossos defeitos e qualidades se mostrando exatamente como voltariam a se mostrar dezenas de outras vezes (quase sempre somos contendores desleais e amigos leais ao mesmo tempo). De A. a Z., não vi nelas aquilo que só percebi muitos anos depois: o que buscamos é um todo em que a parte física é somente uma das frações (escrevi de “A. a Z”; contudo, tão confusos estávamos todos que o melhor seria escrever “de? a ?”).
Sonhávamos com a faculdade, onde nos redimiríamos dos fracassos anteriores. Era a ideia, mas… Lá descobri que meus galanteios até funcionavam, só que me tornei um tipo de monogâmico sucessivo e não exatamente um Dom Juan com “mille e tre” conquistas: il catalogo non è questo. Querem ver?
Logo no primeiro ano do curso de Direito, I. me fisgou. I. cursava o último ano e era um pouco mais velha que seus colegas; ela já tinha mais de 30 anos, eu tinha 17 ou 18, imagino. Para o meu azar, um professor, dado a paixões avassaladoras por alunas (paixões verdadeiras, posso afirmar), gostava de I. (não, não era então crime e o tal professor sofria as suas dores ou comemorava as suas vitórias sem perseguir ou ameaçar aquelas por quem ele se desesperava — vi cenas de choro dele que me impressionaram: se um homem experiente como ele, meio galã, sofria daquele jeito, o que seria de nós outros?). I. trabalhava no aeroporto (longe…) e eu dirigia um carro de um irmão que havia se mudado de cidade; assim, eu podia a buscar no fim do seu expediente (tarde…), e depois bebíamos algo e ficávamos dentro do carro, estacionado em frente à sua casa, fazendo o que não deveríamos. Com I. aprendi a não ter medo de mulheres fortes. Ah, e o professor? Tornou-se um grande amigo; I., portanto, ainda contribuiu para que eu aprendesse, indiretamente, as benesses do perdão — dizem que somos patriarcais, mas gosto de pensar que cavalheiros sabem se entender, em disputas amorosas, com alguma forma de… panache (a palavra é estranha, mas é também le mot juste).
C. também estava à minha frente no curso. Namoramos? Sim, creio que foi um namoro. C. me queria com um amor sincero, declarado e declamado, do tipo que até a faria aceitar me dividir com outra pessoa (o que não ocorreu, digo logo, mas a proposta foi feita por ela). E eu, tristemente, não amava C. e com ela a crueldade se instalou em mim: numa última conversa com C., deixei-a só, ela chorando enquanto eu me afastava. Para purgar uma fração mínima dos meus muitos pecados, espero que C. tenha sido feliz e que me odeie muito.
Eu e F. — não a F. definitiva que ainda viria — brincamos de nos querer por dois ou três anos. Não funcionou e nada aconteceu. F. foi quem me trouxe a convicção de que dúvidas persistentes, mesmo aquelas falsamente criadas, matam qualquer vontade. Também a reencontrei muito tempo depois de formado e então descontamos o tempo perdido, quando F. fez-se uma professora que me levou a entender que não se deve buscar em nós mesmos os jovens que um dia fomos, mas sim os jovens que não chegamos a ser por causa de incertezas e falta de atitudes; com F., vi que o passado nem sempre nos assombrará.
L. e A.L. foram minhas calouras. Não sei bem o que tivemos (gente de mente impura, vocês: não ao mesmo tempo); sei que brincaram comigo, mesmo sabendo o que eu sentia. Já conhecendo a minha própria crueldade, com L. e A.L. adestrei-me na impiedade feminina.
Acostumei-me, já se notou, com fracassos e vitórias pequenas; na verdade, eu pouco me incomodava com a minha situação amorosa. Assistia às aulas de manhã, dormia quase a tarde toda e retornava para a faculdade à noite, porque passei quatro dos cinco anos do curso envolvido com o centro acadêmico e lá ficávamos fingindo alguma preocupação com o movimento estudantil, mesmo sendo a cerveja noturna o que nos motivava, a mim e a outros que iam à faculdade nos dois turnos de aula. Por estar acomodado às miudezas cotidianas daquela existência que eu ia gastando, pouco notei como R. foi invadindo a minha vida; quando me dei conta, até as nossas famílias já se conheciam. E então nós nos amamos e depois nos odiamos durante longos anos. R. mostrou-me, inicialmente, que o amor cotidiano e caseiro poderia ser bom, e depois vivi com ela, por culpa de nós ambos, coisas não tão boas assim, vocês logo o verão.
(Aqui eu faço um pequeno desvio: na minha turma também estudava F., não aquela já mencionada, e nós não nos bicávamos, para dizer o mínimo. Guardem seu nome, ou antes, sua inicial, porque F. retornará para rearrumar o que estava desarranjado. Desvio feito, voltemos à estrada em que estávamos.)
Sei que já notaram que, quando eu nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, também me veio sussurrar palavras ao pé do ouvido. Só que percebo agora que este texto está ficando longuíssimo, quase uma “historia calamitatum” moral (e não física, por favor, se é que me entendem). Encerro por ora, portanto, e prometo continuar, a quem me acompanhou até aqui, a crônica de minhas desilusões e, creiam-me, de uma efêmera epifania que poderia ter me redimido.
*Li, muitos anos atrás, uma crônica ou um ensaio chamado, penso, “Them”, e com certeza há ecos dele neste meu “Elas”; ou talvez o ensaio fosse em português e também intitulado “Elas”. Como acumulei horas e horas de leituras de ensaios, não o conseguiria localizar hoje; faço aqui, então, esta confissão de influência ou mesmo — será? — de um quase plágio, pois aquele texto não me ficou na memória e dele apenas guardei a sua ideia geral.