A pobreza é um dos látegos que bate com mais força na carne do homem. Não por acaso, em “O Suicídio” (1897), o sociólogo francês Emile Durkheim (1858-1917) atribui à extrema carência dos recursos básicos para se viver com dignidade a causa para uma modalidade específica dentre as que se referem à morte achada pelas próprias mãos. O suicídio anômico, juntamente com o egoísta e o altruísta, compõe essa verdadeira gênese da autoflagelação, mas apresenta especificidades muito suas. Quando há uma equivalência entre o aumento das taxas de suicídio e os índices de desemprego e a consequente pauperização de determinados estratos sociais, pode-se imputar o caráter anômico, isto é, o que reflete a desorganização sistêmica de uma sociedade, ao sacrifício da vida pelo próprio indivíduo. Pauperização, aliás, era um conceito muito empregado por Karl Marx (1818-1883), que dele lançava mão a fim de defender o argumento de que o desastre da humanidade, a Revolução Industrial (1760-1840), foi a responsável pelo empobrecimento galopante do proletariado do mundo inteiro, tornado incapaz de reagir ao avanço das máquinas. O crítico de arte britânico Roger Scruton (1944-2020), reconhecia, por óbvio, a importância das máquinas para o desenvolvimento do homem, mas também alegava que com elas o mundo perdera muito de sua ingenuidade, sua ternura e sua beleza, daí a arte não poder nunca prescindir da estrita observância de todos os paradigmas canônicos no que concerne ao requinte estético.
“A Vida de Togo” (2022) fala, sim, de penúria, mas de vida, não de morte. O uruguaio Israel Adrián Caetano deposita em seu protagonista, um guardador de carros — um desses ofícios que inventamos para mitigar a desatenção para com os mais necessitados — que toca seu dia a dia da melhor forma que consegue (e ele consegue mesmo), mesmo diante das ameaças reais que avançam sobre o que possui de mais valioso. E esse seu único tesouro é o que lhe permite resistir e se manter no ringue, por mais desigual que a luta seja.
Jorge da Silva, o Togo, o anti-herói dessa história, habita um universo sobre o qual Caetano fala bem. Já entrado em anos, coxo e ostentando a tristeza que o eleva e o aprisiona no seu próprio mundo, o protagonista de Diego Alonso Gómez é um mulato cheio de vida, apesar do cabelo e da barba de algodão e de uma bengala, que usa desde o acidente que abreviou sua carreira de pugilista no auge. O diretor-roteirista replica um enredo de tragédias pessoais visto dezenas de vezes, mas que aqui ganha novas cores à medida que a trama vai se desenrolando. Símbolo maior do lumpemproletariado, Togo encarna também outras chagas da miséria, que no seu caso veio embalada por uma perda que não conseguiu superar, e pouco tempo depois estava na rua, morando numa praça de Montevidéu. Caetano não dá nenhuma pista das possíveis dificuldades de seu personagem central desde então — o que não é nada custoso de se imaginar —, mas a cena que abre o filme, em flashback, dá uma noção muito precisa do tipo de vida a que teve de se acostumar.
Gómez, um homem de cinquenta anos, passa tranquilamente por um ancião de oitenta e tantos, ressaltando essa senectude precoce, esse sofrimento que só uma vida de privações radicais explica. Seus enfrentamentos com a gangue de traficantes juvenis que se instala no bairro e reivindica o domínio da área sob sua jurisdição; a amizade com Mercedes, a filha temporã e negligenciada de um casal endinheirado, boa performance de Catalina Arrillaga; a doença mental de Yena, a filha vivida por Sabrina Valiente, internada num sanatório afastado; as tentativas de ajuda a Milton, o colega de trabalho cadeirante interpretado por Nestor Prieto, todas essas subtramas orquestradas pelo diretor, se prestam a conferir ao protagonista a aura de humanidade que o faz tão querido pela vizinhança, benquerença que também desperta no público já nos primeiros dos poucos mais de 90 minutos.
Caetano mantém essa magia em torno de Togo até o fim, fazendo questão também de nunca permitir que a figura desvalida de Togo redunde no coitadismo. Muito pelo contrário: pelo que se depreende das cenas de embates com seus tantos algozes, a chama desse homem alquebrado pelo tempo e pela própria vida há de continuar ardendo.
Filme: A Vida de Togo
Direção: Israel Adrián Caetano
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10