Tornou-se célebre a máxima cunhada por Winston Churchill (1874-1965), primeiro-ministro do Reino Unido quando da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sobre a necessidade da guerra. Disse Churchill que, em muitas circunstâncias, declarar guerra contra quem quer que seja é, muitas vezes, a única decisão a se tomar a fim de se evitar a desonra e conservar-se a paz, e que um povo que foge das causas pelas quais é imperioso combater acaba engolido pela própria covardia, sentimento humano muito ardiloso em seus disfarces de bondade, fraternidade, tolerância. É nesse espectro cinzento que florescem tiranos de toda natureza, de inúmeros matizes ideológicos, cujo desígnio primeiro é, em estando no poder, mantê-lo a qualquer custo. Não pode haver razão mais justa para uma guerra que reunir as mulheres e homens amantes da verdadeiramente liberdade — que sempre foi uma conquista, nunca um direito, e muito menos absoluto — a fim de se encarniçar dos ideais que o espírito livre evoca e partir com tudo para cima de tiranos e sua corte de asseclas, assaltantes dos cofres públicos e perversores do sonho de milhões de seres humanos.
A ascensão de Francisco Franco (1892-1975) ao poder na Espanha é um dos episódios mais controversos da história do país. Homem de ideias conservadoras, Franco era admirado por suas habilidades bélicas, e em 1926, aos 34 anos, foi promovido a general, o mais jovem da Europa. Em 1930, a monarquia como sistema de governo foi ficando insustentável e no ano seguinte eleições foram convocadas. Niceto Alcála-Zamora (1877-1949) foi eleito presidente, o que sinalizou que a sociedade ansiava por um tempo de mais austeridade. Foi a deixa para que Franco mostrasse do que era capaz e fizesse valer seu poder de liderança, destacando-se no controle de turbilhões sociais como as greves dos mineiros nas Astúrias, em 1934. Em 1935, foi nomeado comandante em chefe do exército espanhol no Marrocos, e um ano depois, Franco era o chefe do Estado Maior. O protagonismo de políticos socialistas como o primeiro-ministro socialista Francisco Largo Caballero (1869-1946) marcou o início de um tempo de polarização e comoção social crescentes na Espanha. Sem pejo de manifestar seu desgosto com os rumos que o país tonava, o general, já generalíssimo a essa altura, afastou-se da chefia do exército e foi mandado em missão de paz para as ilhas Canárias.
Mesmo passando ao largo da trajetória política de Franco, um dos ditadores mais abjetos da história da humanidade, “Surdo” (2019) só existe porque figuras como o autocrata existiram. Alfonso Cortés-Cavanillas faz um recorte preciso dos conflitos em seu país, remontando, claro à Guerra Civil Espanhola (1936-1939), não por acaso o momento em que Franco se consolida no papel de grande timoneiro da Espanha fascista. Acrescentando ao componente histórico a inspiração num clássico da literatura universal, o filme de Cortés-Cavanillas vai muito além da mera sátira. “Por Quem os Sinos Dobram” (1940) serve de esteio à narrativa de “Surdo”, uma vez que no romance do americano Ernest Hemingway (1899-1961), sem dúvida uma das suas melhores obras, o autor também lança mão de um anti-herói destemido e fragilizado a um só tempo, e que faz da guerra um palco para pequenas e urgentes revoluções.
O roteiro de Cortés-Cavanillas e Juan Carlos Díaz faz referência à história em quadrinhos que deu origem ao enredo colocando em cena personagens paramentados com capas de couro e chapéu de abas derreadas: é assim como quase sempre se apresenta Anselmo Rojas, o guerreiro solitário de Asier Etxeandia. Rojas passa a vagar meio desorientado desde que perdeu a audição do ouvido esquerdo em combate, por causa da explosão de um petardo a centímetros de onde estava. As sequências em que o diretor corta o áudio a fim de dar a real dimensão de como aquele homem, entre feroz e indefeso, passa a sentir no mundo são inesperadamente perturbadoras. Conforme a história avulta, a solidão avassaladora de Rojas vai sendo diminuída a pouco e pouco, graças à presença esporádica de Rosa Ribagorda, a camponesa negligenciada pelo marido interpretada por Marian Álvarez. Nesse ponto, Cortés-Cavanillas e Díaz elaboram um contraponto estimulante, dando espaço a figura de Darya Sergueiévitch, a mercenária serva de Olimpia Melinte, antípoda de Rosa e num sofrimento contido pela paixão inconfessa por Rojas. O amor possível em tempos de guerra.
Filme: Surdo
Direção: Alfonso Cortés-Cavanillas
Ano: 2019
Gêneros: Western
Nota: 8/10