Os jurados da Academia Sueca gostam de apontar o dedo para um autor ou autora ao anunciar o Prêmio Nobel de Literatura. É como se dissessem a cada ano: prestem a atenção nessa figura que está escrevendo e vocês deveriam ler mais. Mais do que um referendo de celebridades, a premiação emite um sinal de alerta para o mundo em convulsão, tomado de guerras civis (efetivas e simbólicas) e afogado em tecnologia. E neste ano, os holofotes miraram a escritora francesa Annie Ernaux.
Os suecos foram certeiros ao premiar mais mulheres, negros e autores que vieram das margens ou periferias do mundo nos últimos anos. Até mesmo a Europa tem suas periferias culturais — que o digam os irlandeses e russos. Annie Ernaux representa uma França que não é o centro da “República Mundial das Letras”. A autora saiu das classes populares, na região interiorana da Normandia. Gente que vê Paris como um universo distante, um lugar a ser conquistado a duras penas intelectuais.
Os livros de Ernaux começaram a sair com regularidade no Brasil na última década: “Os Anos”, “A Vergonha”, “O Acontecimento”, “O Lugar” e “O Jovem” (a ser lançado no final deste ano). O que o leitor e sobretudo a leitora vai encontrar é uma escrita extraordinária, simples, direta e concisa (suas obras são curtas). Trata-se de um olhar em primeira pessoa para uma vida que acreditamos a ser da própria Annie e para o restante da sociedade, no caso a francesa. Trauma e experiência são uma constante nos livros dela.
A tentação é classificar a obra de Ernaux de autoficção. Porém, ela é mais do que isso. Em “O Lugar”, a morte do pai serve de ponto de partida para rememoração da trajetória de sua família, o dialeto da Normandia (o patoá na região) e a luta que é para alguém se locomover na hierarquia francesa. “Os Anos” são um passeio absurdo por seis décadas do seu país — nascida em 1940, Annie viu e viveu de tudo. Já “O Acontecimento” expõe o lado sombrio de uma França católica e conservadora ao extremo.
Ernaux conhece como ninguém as profundezas da França, afinal foi professora de ensino básico a vida toda e veio de uma família oriunda de um grotão do país. É de se imaginar o impacto de um autor ou uma autora brasileira que começar a dissecar as atrocidades do país por meio da escrita ou do cinema — esse movimento já teve início por aqui e é questão de tempo para que fiquemos chocados com um olhar ácido e duro vindo de “baixo”, um ponto de vista que desfaça a autoimagem brasileira.
Os franceses exploram muito bem as possibilidades da ficção de si mesmo. No Brasil, estão disponíveis obras excepcionais como “Retorno a Reims”, de Didier Eribon; “O que Amar quer Dizer”, de Mathieu Lindon; “O Fim de Eddy”, de Édouard Louis; e “Escute suas Feras”, de Nastassja Martin. Vindo da mesma tradição francesa, temos no Brasil a obra incomparável de Jean Claude Bernardet, autor de “Aquele Rapaz”, “A Doença” e “O Corpo Crítico”. Todos provam que o “eu” vai mais além do umbigo.