O filme mais bonito (e hipnotizante) que você irá ver na Netflix Bobker / Kruger Films

O filme mais bonito (e hipnotizante) que você irá ver na Netflix

Tragédias perpassam a vida do homem desde o princípio dos tempos, e a especulação de como certos episódios poder-se-iam ter dado mais que delirante chega a ser apenas pueril em algum momento. Fechamos os olhos à realidade, que quase sempre insuportável, inspira-nos justamente esse gosto pela fantasia, um lugar mágico, impenetrável, onde mora a certeza de que nenhum pedaço da feiura da vida nos há de afligir. Passa-se muito tempo até que nos convençamos da necessidade de se aceitar a vida como ela é, para que vençamos o cansaço, o desalento, o enfaro de tudo e consigamos fazer da revolta, a última borra do tacho, um capital realmente valioso. Efemérides políticas e sociais são tomadas à luz de genuínos enigmas: nada do que vai ali tem o menor significado, a não ser por seu aspecto grandiloquente de festa, edulcorado pela presença de fanfarras, de discursos persuasivos em tom pomposo, de homens em uniformes respeitáveis. Mas mesmo as melhores festas não duram para sempre.

Reconfigurando uma das histórias mais célebres do repertório dramatúrgico universal de que se tem notícia, a australiana Claire McCarthy oferece a uma personagem secundária a chance de dar sua versão sobre uma das maiores intrigas já criadas pelo talento de um artista. Ofélia, a moça que se afoga no rio depois do romance clandestino com o herdeiro do trono da Dinamarca em “Hamlet” (1602), ganha pelas mãos da diretora uma trama para chamar de sua. A adaptação de Semi Chellas do romance de Lisa Klein não poderia ser outra coisa que não o desabafo pungente de uma garota meio perdida que se vê no centro de um dos golpes de Estado mais rumorosos da narrativa teatral, tão convincentemente descrito que não tardou a migrar das páginas de publicações temáticas direto para a cultura pop, conservando a um só tempo o frescor e a tradição. Muito do sucesso de “Hamlet”, a peça por excelência, deve-se, por evidente, a seu autor. É ponto pacífico e informação largamente sabida que William Shakespeare (1564-1616), além de um ator incansável dono da verve mediúnica que o fazia verossímil até em papéis de mulheres — expediente absolutamente comum na Inglaterra de sua época, uma vez que ao belo sexo cabia apenas ser a estrela bela e recatada do lar, mas que acenava com o perigo real de descambar para o grotesco da caricatura, o que não era exatamente de todo ruim; às vezes, por esse motivo, a bilheteria ia até melhor —, era um ensaiador incansável, atento aos menores detalhes da atuação de seus intérpretes, que deveriam reproduzir pela palavra e pelo gesto a ideia encerrada no texto. Esse rigor do teatro elisabetano adquire outras cores no trabalho de McCarthy, Chellas e Klein, um trio de mulheres experientes que abre alas à habilidade e à vocação de uma jovem atriz.

Daisy Ridley tem um bom histórico como mocinha de enredos memoráveis. A heroína da franquia “Star Wars” encarna em “Ofélia” (2019) o ideário shakespeariano de donzelas nem tão puritanas assim e preparadas para uma boa guerra, o que vem a ser regra num tempo em que as mulheres eram uma extensão de seus homens, e só. McCarthy opta por começar seu filme do encerramento, retrocedendo a partir da despedida da personagem-título rumo aos meandros caudalosos do romance que a perde, em “Hamlet” e aqui. A diretora faz um passeio pela vida de Ofélia, da infância sem mãe de que abundam lembranças até jocosas, como ser confundida com um moleque porque Polônio, o pai viúvo interpretado por Dominic Mafham, tinha de se preocupar em garantir o sustento dos dois e quase nunca estava em casa, a imagens um tanto mais perturbadoras. Essa etapa é defendida com zelo por Mia Quiney, que entrega a personagem com poucas arestas a limar. Já estabelecida como dama de companhia da rainha Gertrudes, desempenho nada mais que protocolar de Naomi Watts, Ridley atravessa os anos de Ofélia na corte do rei Cláudio, que como todos sabem, urdira um estratagema macabro para dar cabo da vida do irmão, o rei Hamlet, de Nathaniel Parker, e usurpar a Coroa. “Ofélia” preserva as filigranas do texto original — como o uso de palavras-chave para induzir o espectador a construir as deduções certas (e principalmente as erradas) — e ainda junta, claro, o charme e a beleza do elenco. As cenas de Cláudio, o rei-vilão desenvolvido por Clive Owen, só não são melhores porque acabam empanadas pelo destaque da protagonista, e justiça se lhe faça, a química atingida com Watts levanta um pouco o trabalho dela. Isso até que mais um componente desse enrosco aporta na narrativa.

George MacKay se confirma como um dos melhores atores de sua geração. Na pele do príncipe Hamlet, o ator ressuscita o interesse por uma história de quatrocentos anos, deixando que seus colegas também brilhem. Malgrado não se trate de uma competição, fica difícil cravar quem toma para si o protagonismo do segundo para o terceiro ato, se Hamlet, a fonte de que brotam as múltiplas possibilidades aproveitadas por McCarthy, se Ofélia, que justifica mesmo o título de seu filme. O caso é que a história sempre cresce quando os dois aparecem juntos, sobrando espaço e pulso para novas conjecturas sobre a peça de 1602. A forma como a diretora expõe a relação de Gertrudes e sua aia favorita — que cai em desgraça quando seu envolvimento com Hamlet é revelado, mas também pelo próprio temperamento sobranceiro —, sugere que Ofélia teria descoberto uma participação mais efetiva da monarca no assassinato do marido, quiçá até tendo sido ela a seduzir Cláudio a fim de, num futuro próximo, entregar o poder a Hamlet. Estaria Gertrudes apaixonada pelo próprio filho, e seria a nova Jocasta de Shakespeare? Em se tratando do Bardo, essa, é, sim, uma possibilidade.


Filme: Ofélia
Direção: Claire McCarthy
Ano: 2019
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10