“Sua Alteza Real”, segundo romance de Thomas Mann, parece estranho a qualquer um de seus leitores mais familiarizados. O criador de “Morte em Veneza” é conhecido como um autor de decadência e realismo simbólico, mestre do uso das alegorias para analisar e dar forma a um mundo doente, não apenas nas subjetividades psicológicas, mas igualmente em suas nuances sócio-históricas. Seus principais romances (“Montanha Mágica”, “Doutor Fausto” e a tetralogia “José e Seus Irmãos” — para mim a sua grande e verdadeira obra-prima), sempre com personagens densos, grandes descrições e digressões, contrasta muito com esse “Sua Alteza Real”, que se serve de personagens simples, arquetípicos e unidimensionais. Seu formato é o de conto de fada, e dessa forma foi recebido pela crítica de sua época. O próprio Mann, na velhice, disse se tratar apenas de uma história despretensiosa, mesmo assim com algum charme, e sentenciou: “mas os alemães não querem saber de charme”. Ele se ressentiu com a recepção morna, para não dizer pálida, da critica à época da publicação. O problema maior estava em seu livro precedente, nada mais que o grandioso “Os Buddenbrooks”, sua estreia apoteótica, obra que lhe rendeu — a contragosto do germânico, haja vista o fato de que já havia lançado “A Montanha Mágica” — o Prêmio Nobel de Literatura. O desfecho feliz, esperançoso do romance, para muitos foi uma descida ao mundo do otimismo depois da densidade do primeiro livro.
Pois bem, trata-se da história do príncipe Klaus Heinrich, de um pequeno grão-ducado alemão. Seu nascimento alimenta a lenda de que haveria um nobre que faria, com uma só mão mais que qualquer outro fez por aquelas terras. Klaus nasce com uma das mãos defeituosas, raquítica, que por toda sua vida tentaria esconder. Depois de a diegese do romance apresentar toda a educação moral e intelectual de Klaus e seu consequente crescimento e amadurecimento em mais da metade de suas 350 páginas, nas quais também o irmão mais velho de Klaus lhe passa os deveres reais — já que ele era o líder carismático e amado pelo povo, e não o mais velho —, o ducado recebe a visita de um pequeno clã multimilionário norte americano, composto pelo patriarca Spoelmann, que herdara a fortuna do pai — um grande homem de negócios de sangue mestiço —, e Imma, sua filha. Vinham com o pretexto de estarem atrás das águas medicinais do lugar: o velho bilionário queria alívio para as cólicas renais insuportáveis, por isso se instalariam na cidade. Pleiteiam e compram o Castelo Velho, uma das residências reais, vendida a fim de cobrir dívidas e despesas de um reino empobrecido e em franca decadência. Irmãos de Klaus sentem-se ofendidos: são burgueses adquirindo residência real, mas que, com o poder financeiro, poderiam reerguer o Castelo e devolver-lhe os ares de realeza. A recepção à família de estrangeiros que compram a propriedade cria a situação chave para que Klaus encante-se por Imma. O tom romântico ganha força, a narrativa, um curso fantasioso. Klaus tenta de todo modo se aproximar de Imma, a doença do pai da moça é providencial à narrativa: o velho, acamado, não poderia impedir os passeios de cavalo na companhia do jovem príncipe. Paralelamente, o reino passa por graves dificuldades financeiras, e o rumo que a relação de ambos toma, sempre definida pelo amor, é o do natural casamento. Quanto mais se agrava a crise do ducado, mais próximos estão os dois personagens. Quando Klaus é obrigado a sair do reino de fantasia de uma vida aristocrática, em pleno fim do século 19, para tomar providências quanto à tensão financeira que atinge situação limite, os burburinhos a respeito de seu romance com a burguesa milionária coadunam-se, junto à corte e à população — que amava o carismático Klaus —, com a lenda de que o príncipe de uma só mão salvaria o estado. Assim, o casamento passa a ser a redenção desse ducado empobrecido e à beira de um colapso. Spoelmann empresta dinheiro em condições paternais, as dívidas são saudadas e a prosperidade, junto do amor, triunfa com o casal saudado na cerimônia matrimonial, como heróis de um mundo quebradiço.
A fragilidade da trama esconde, bem ao gosto manniano, uma mordaz crítica ao espírito e ao ócio aristocrático (no plano sócio-histórico) e a possibilidade de transmutar a vida de aparência e futilidade em uma vida constituída em experiências verazes sedimentadas pela profundidade do amor (no plano subjetivo e psicológico).
Para além da visão santificada sobre o gênio de Thomas Mann, não há como perceber a sua acidez ao fazer com que o irmão mais velho do príncipe entregue o lugar que lhe era de direito ao irmão mais novo porque o povo não o tinha escolhido como rei, e sim ao caçula, tal como acontecera em sua família com relação ao grande escritor Heinrich Mann, primogênito da família (autor do brilhante “O Anjo Azul”), cuja famosa biografia tem o curioso título de “O Irmão”. Outra referência clara é a origem mestiça de Imma: a mãe de Mann, Julia, era brasileira e trazia consigo os traços da mestiçagem em seu sangue, e mais ainda, a própria família do escritor passara por uma decadência financeira que marcara a vida dos jovens filhos do sr. Mann, muito bem transposta e transformada em “Os Buddenbrooks”, e nessas situações chegara à vida do autor Kátia, com quem se casaria e levaria sua vida burguesa.
Personagens alegóricas surgem no romance, e a partir delas podemos detectar a ironia ácida de Mann contra a vida de aparência, meramente representativa que tem essas figuras ocas. O grande tema que o livro traz é o da farsa, do “teatro social” para o qual nos aponta Richard Sennett em seu “O Declínio do Homem Público”, e que só pode ser vencido se atacado com coisas verdadeiras, como o amor, por exemplo, ou uma grande crise financeira (sanada por um golpe do destino amoroso de dois jovens, por que não?). O mundo velho, “ancien regime”, só trazia de si uma aparência de beleza. O castelo no qual moraria o casal seria reconstruído com o dinheiro burguês americano, e do velho, só viria a aparência, o ornamento. Diz o narrador: “Ao grande canteiro central, diante da rampa de acesso, seria transplantada a roseira do Castelo Velho, e lá, já não rodeada de muros mofados, mas com ar, sol e adubo gordo, agora veriam que rosas ela produziria refutando as mentiras populares, se fosse suficientemente obstinada e petulante”.
Thomas Mann, mesmo em seu conto de fada, é ainda Thomas Mann, o autor completo, consistente, tecnicamente perfeito e dotado do mais refinado tom irônico e percepção crítica da realidade. Como ele mesmo queria: um Goethe moderno. Um escritor que não consegue deixar de olhar, já que sua maldição, como ele mesmo sugere em sua novela “Tonio Kröger”, é essa, a de transformar a experiência em linguagem, sem abrir concessões.
Sua obsessão por sua arte encontra espaço em seu conto de fadas, quando Klaus, visitado por um poeta, o vê dissertar sobre a vida de um homem de letras, que é mais feita de contemplação que de vivência, ou no mínimo, de uma vivência contemplativa, como fez Rosa no sertão de Minas. Diz o poeta ao príncipe maneta: “Eu tenho de poupar, controlar-me, medroso e avarento, por motivos higiênicos. Pois é de higiene que gente como eu precisa em primeiro lugar… ela é nossa moral. Mas nada é mais anti-higiênico que a vida…”