Livros grandes (com mais de 600 páginas), caso de “Os Detetives Selvagens”, do chileno Roberto Bolaño, costumam deixar saudade. A gente convive tempo demais com os personagens. Na hora da despedida, dá um nó na garganta. Bate uma vontade de que a história não acabe, de que ela continue pelo dobro de páginas. Principalmente quando, no fim, a vida dos personagens fica em aberto, como a nossa. Lembro que senti algo parecido em “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Quando Hans Castorp desce do bendito sanatório é para lutar na guerra. Mann o abandona em pleno campo de batalha. Ficamos sem saber o que acontece com ele. Deve ter morrido. Mas quem pode afirmar que foi ali, naquele momento? Bolaño deixa seus personagens na estrada. Para onde eles vão? Como vão resolver suas pendengas? É como se ele dissesse: “daqui pra frente é com cada um de vocês, leitores. Quem quiser que continue”. Sacanagem. Mas a nossa vida é assim. A gente sabe que vai morrer. O que vamos fazer até a morte chegar é um mistério para todos. Temos o compromisso inadiável de escrever o roteiro de nossas vidas. Este é o sentido da frase de Sartre: “estamos condenados à liberdade”. O futuro é uma incerteza, uma página em branco que deve ser preenchida. Neste sentido, “Os Detetives Selvagens” é um romance existencialista. Os personagens estão meio à deriva. Eles não sabem exatamente o que fazer ou para onde ir, que direção imprimir à existência. O que não seria, assim, muito grave, se eles fossem europeus. Ser existencialista no velho mundo tem certo charme decadente. Duro é ser existencialista ou algo que o valha na América Latina. O charme deixa de ser decadente para se tornar suicida.
Bolaño não fala muito em política e, a rigor, seus personagens têm preocupações estéticas, eminentemente literárias. Eles não estão muito interessados em derrubar a corja administrativa, mas em espezinhar o que consideram ser a corja poética do México. Uma profusão de nomes liderada, sem sombra de dúvidas, por Octávio Paz. Por que o grande teórico seria o alvo principal? Não vale a pena perder muito tempo à procura de respostas incisivas. O fato é que ele representa o status quo. Simples assim. Basta lembrar, em defesa da afirmação, que os principais personagens são jovens, muito jovens. Mesmo assim, os danados têm uma gama de leitura bastante extensa. Diga-se de passagem, de títulos que eles furtam em mega livrarias, o único esporte que praticam com imensa disciplina. Octávio é um símbolo a ser derrubado e substituído por uma nova (des) ordem, sem que isto signifique um projeto político, do modo como há um projeto de poder na carreira do professor Julio Matasanz, em “Erec e Enide”, do espanhol Manuel Vázquez Montalbán.
Não há projeto, mas apenas intenção, que não chega a ser sequer uma palavra de ordem. Os garotos não saberiam como derrubar Octávio e não saberiam o que colocar no seu lugar. Mas eles se rebelam, como se rebelam os garotos com alguma leitura. Criam um movimento. Eles se autodenominam poetas do realismo visceral. Ora, está na cara que Bolaño brinca com o clichê eternamente lançado sobre a literatura latino-americana como sua principal característica, o realismo mágico. O que seria o realismo visceral? Nenhuma explicação quanto ao tema. Podemos deduzir que se trata de agarrar a vida pelas entranhas. O movimento não tem sede, estatutos ou qualquer outro tipo de burocracia. Seus representantes são poetas que investem contra alvos flutuantes, que tampouco pertencem a outros movimentos definidos. Eles querem, presumo, se afirmar, na passagem para a vida adulta. O rito, em Bolaño, contraditoriamente, não pressupõe uma amostragem da produção criativa dos poetas. Todos eles escrevem, em maior ou menor escala, mas nem sempre o que escrevem é publicado e não nos é dado conhecer o que inventam. Não podemos, portanto, julgar a validade de suas propostas. O que seria, talvez, acadêmico demais para o gosto deles. Os real-visceralistas são antiacadêmicos, anti-teses, anti-monografias, anti-qualquer coisa que cheire a enquadramento hierárquico. Libertários, anárquicos ou expressões correlatas, de um esquerdismo de almanaque, seriam provavelmente recusados por eles.
Os detetives selvagens buscam, na verdade, referências de uma poeta que fez parte de um grupo chamado realismo visceral. Sim, eles não são originais na escolha do nome. E agem por conta própria, sem nenhum propósito maior, a não ser descobrir o paradeiro de Cesárea Tinajero. Nesta investigação ociosa, o leitor acompanha os desdobramentos das vidas de Garcia Madero, Ulises Lima e Arturo Belano. Mais do que membros-fundadores dos real-visceralistas, representantes de uma geração que vira as costas para o ideário do pós-modernismo, da globalização, do liberalismo ou como queira chamar o ideário que identifica os vencedores na sociedade capitalista como aqueles que possuem as contas bancárias mais gordas, as propriedades mais vastas ou o dia a dia regido pelas responsabilidades advindas de um império financeiro. Os detetives selvagens não são executivos, não querem ser executivos e não sentem raiva de quem é executivo. Assim como não são comunistas, zapatistas, marxistas, guerrilheiros ou o raio que o parta em alguma facção maoísta. Não é isto que está em jogo, embora muitas leituras possíveis permaneçam reptícias, para quem quiser ler.
Do mesmo modo que Bolaño parece desenhar uma biografia e uma geografia de sonho para seus andarilhos (“… como são falsos a maioria dos detalhes desta narrativa, concebida unicamente pelo prazer, pelo gosto de iludir”, dirá Georges Perec ao final de “A Coleção Particular”), num desassombro que poderíamos chamar de borgeano (talvez para brincar de realismo mágico), a constatação de que boa parte dos personagens é miserável, sem posses, fodida e mal paga atrela-se mais a uma espécie de condição particular de escolha do que a uma contingência material inapelável. Não se culpa o destino por nada. Aliás, faz-se o destino, apesar das circunstâncias. Nada impede que fulano e beltrano, a geração dos três patetas audazes, larguem o conforto esporádico e a família para atravessar fronteiras e oceanos, conforme salientou Allen Ginsberg no poema “Uivo”, “em busca de uma dose violenta de qualquer coisa”. E ainda que corra à boca pequena que Lima e Arturo não passam de solenes vagabundos que sobrevivem do tráfico de drogas, eles viajam por motivos mais nobres: um amor, uma paixão, uma experiência e até por ameaça. Sem luxo, sem excesso, sem garantia de nada. Para dar vazão a um desejo, e todo mundo sabe, desde “Os Provérbios do Inferno”, de William Blake, que é “melhor matar uma criança no berço que acalentar desejos insatisfeitos”. E, claro, para seguir as pistas de Tinajero.
Pistas para entender seu romance, Bolaño dispara às pampas na segunda parte do livro, quando ele adquire o efeito de um canto coral. Se “Mexicanos Perdidos no México” e “Os Desertos de Sonora” são narrados por Madero, que logo nas primeiras linhas diz: “fui cordialmente convidado a fazer parte do realismo visceral. Claro que aceitei. Não houve cerimônia de iniciação. Melhor assim”, a segunda parte, que dá nome ao livro, é revestida por um sem-número de depoimentos variados. São contos e minicontos dispersos, soltos, aleatórios, alguns em sequência episódica, outros como pontos de vista diferentes sobre o mesmo assunto, cheios de arestas, que levam a pensar num quebra-cabeça. O mosaico é composto de peças hilárias, surpreendentes, dramáticas. O tênue fio condutor é que todo mundo mais ou menos se conhece, se frequenta, se perde, se reencontra e toca o barco da vida, do jeito que dá, por águas turvas.
E se, na primeira parte, as peças-chaves são apresentadas ao leitor, na segunda, Bolaño assume todas as personalidades que sua imaginação permite conceber, sem freios, num efeito delirante. Na terceira, finalmente, o romance ganha os ares do mistério policialesco, com direito a uma explosão de violência. Porém, é ali nos desertos de Sonora que “Os Detetives Selvagens” paga seu tributo pop a uma tradição do gênero on the road. Depois de dizer que seus personagens são tão inconsequentes quanto poderiam ser profundos e eruditos, Bolaño revela que, no fundo, ele queria mesmo era revitalizar o cenário beatnik. Quer saber? Da minha modesta posição no mundo, eu bato palmas em pé.