O filme na Netflix que vai te perturbar enquanto te ensina uma lição de história Divulgação / Universal Pictures

O filme na Netflix que vai te perturbar enquanto te ensina uma lição de história

A liberdade é uma escolha. Mesmo que nasçamos livres, condições muito particulares vão nos forjando a prisões contras as quais temos de lutar se quisermos manter aceso o gosto pela vida. Dá-nos certo alento a filosofia, unindo o amor, a sabedoria e o amor à sabedoria, mas sempre chega o momento em que, por mais que nos dediquemos a preparar a alma para conformar-se com cenários extremos, o corpo, teimoso, não se submete e se rebela, pleiteando o gozo que julga merecer. Passe um ano ou um século, a verdade é que ninguém acha razoável entregar a própria vida, o maior de seus bens, no altar dos falsos deuses que moem consciências e estraçalham a matéria. Os enfrentamentos entre os demônios mais íntimos de alguém e a realidade cruel e nada justa que rodeia esse indivíduo dão no nascimento de heróis que salvam-se a si mesmos e dessa maneira redimem junto a humanidade, mesmo que condensada num grupo seleto. E nada disso é possível sem boa dose de coragem invulgar, essencial para que se vença as guerras que ainda hão de vir.

Ser livre é uma conquista, e já foi muito mais que mera figura de linguagem. Nos Estados Unidos, berço da democracia liberal por excelência e síntese de tudo quanto se pode verificar de efetivamente benéfico para a vida em sociedade, houve um tempo em que cidadãos poderiam ter seu valor determinado pela cor de sua pele. Muita coisa mudou e muita coisa vai seguir congelada ao longo da História, até que surjam as pessoas certas nos lugares mais insólitos, exatamente aquelas capazes de mudar não só o próprio destino, como de transformar as histórias de quem e presenteado com a sorte de conhecê-las. Harriet Tubman (1822-1913) foi uma dessas joias raras que a bruma do tempo não ousou engolir. Sua vida, de fato digna de um filme, ainda é pouco conhecida e menos ainda valorizada, resgate que a diretora Kasi Lemmons faz em boa hora em “Harriet” (2019), biografia que consegue devolver a um dos símbolos da luta dos afro-americanos por cidadania a real dimensão que ela sempre teve. Uma figura que se impõe para muito além de sua própria trajetória.

A personagem-título, incorporada na performance mediúnica de Cynthia Erivo, levou algum tempo para se tornar o que veio a ser. Antes de se cansar de ser subjugada, espancada e receber o desprezo de senhores particularmente desumanos, Harriet, nascida Araminta Ross e chamada de Minty por seus mais irmãos de cativeiro, era uma só uma forçada trabalhando em serviços braçais na fazenda de Edward Brodess, o escravocrata interpretado por Mike Marunde. O roteiro de Lemmons, coescrito por Gregory Allen Howard escolhe uma cena da abertura para explicar muito da transformação de Minty em Harriet: John, o marido, papel de Zackary Momoh, implora pela soltura da mulher, uma vez que um contrato assinado muito anos antes previa que quando a mãe de Minty fizesse 45 anos, ela seria declarada forra. John é um homem livre, ou seja, poderia ter a mulher que quisesse por esposa, mas sempre apaixonado pela escrava de Brodess, fica ao seu lado. Nesse particular, o texto de Lemmons e Howard sofre de alguns lapsos. Não se tem muito claro qual a relação que poderiam ter tido Minty e Gideon, o sinhozinho de Joe Alwyn, que parece nutrir pela moça um misto de obsessão e paixão recolhida.

Tudo o mais segue o curso esperado, até que toma forma a grande virada, da história e da vida de Harriet, quando consegue, enfim, fugir de Maryland para a Filadélfia, onde passa a morar a pensão de Marie Buchanon, a personagem de Janelle Monáe. Convicta de que não poderia abdicar de sua missão, Harriet Tubman deu início a uma verdadeira peregrinação por todo o território americano — o que lhe valeu o apelido de Moisés, o profeta bíblico que cruzou o mar Vermelho —, até tirar mais de trezentos escravizados do poder de senhores violentos. Um verdadeiro milagre.


Filme: Harriet
Direção: Kasi Lemmons
Ano: 2019
Gêneros: Biografia/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.