O sucesso de filmes de enredo e andamento complexos como “Parasita” (2019), em que o diretor sul-coreano Bong Joon-ho apresenta o drama de duas famílias, interligadas de uma maneira misteriosa e sombria, tem feito escola. Os irmãos cineastas espanhóis Àlex e David Pastor gostaram da ousadia do ritmo, da narrativa, do tema propriamente e transpuseram o que tem sido classificado como efeito Parasita para o seu filme. “A Casa” (2020) também fala de desemprego, queda brusca no padrão de vida, o mundo de aparências em que somos obrigados a permanecer, a doença das relações. Mas consegue ser ainda mais pungente em alguns aspectos.
O publicitário Javier Muñoz, outro belo trabalho de Javier Gutiérrez, acaba de perder o emprego e já sabendo que não vai conseguir manter a ostentação em que vinha vivendo até então, deixa o apartamento suntuoso que aluga no subúrbio elegante de Barcelona e vai morar com a mulher, Marga, interpretada por Ruth Díaz, e Dani, o filho do casal, no conjugado simples de um bairro operário. Muñoz tenta fazer a coisa certa, mas logo é assaltado pelo desejo irracional de continuar a frequentar o imóvel, ao passo que tem algumas ideias para expulsar os novos ocupantes, que de pronto lhe despertam uma inveja tão despropositada quanto insana.
Partindo de um começo meio jocoso, em que os irmãos Pastor propõem ao espectador tomar seu filme como uma sátira leve sobre o estilo de vida do homem contemporâneo, “A Casa” apresenta seu protagonista como um gênio decaído da publicidade, que embora continue a ser muito bom no que faz, não consegue absorver o que o mercado quer dele. Esses novos tempos, desumanamente difíceis, provam ao personagem de Gutiérrez que em algum momento de sua trajetória profissional ele perdera o tino, levado pelo gosto por métodos e ideias ultrapassados, o que o aparta das atuais tendências sobre o que se valoriza em comerciais e anúncios no século 21, que prima por oferecer igualmente de condições para o consumo e a prestação de serviços. Seu desespero é tamanho que comparece a uma entrevista de emprego na agência presidida por um ex-colega, depois de praticamente enxotado por dois potenciais novos chefes quinze anos mais jovens num encontro anterior, sem ter lido direito o classificado do jornal e quase assina um contrato que lhe exigiria três meses como período de experiência, sem salário. É obrigado a sair à francesa, entre constrangido — ainda mais que na primeira entrevista, quando solicitara que o recepcionista da agência validasse o cartão do estacionamento em que parara sua BMW, e ouvira como resposta que não seria possível, uma vez que a cortesia era destinada apenas a clientes — e furioso, cólera que descarrega na lataria de seu bólido possante.
O ressentimento que nunca ferve em Muñoz, mas cozinha-lhe por dentro, em fogo baixo, é a chave para se entender o roteiro dos diretores, amarrado pelo talento admirável de Gutiérrez — já mostrado em outras joias da indústria cinematográfica da Espanha, como “O Autor” (2017), de Manuel Martín Cuenca —, que imprime a seu personagem, por meio de uma atuação precisa, a dubiedade que define tipos como esse. A loucura se apossa do protagonista de tal forma que ele acaba arquitetando um jeito de se aproximar de Tomás, de um Mario Casas em segundo plano, e tornar-se seu amigo, uma vez que passa a frequentar as reuniões do grupo de adictos em drogas a que Tomás comparece. Não demora e Tomás o convida a jantar em sua casa, na companhia da esposa, Lara, interpretada por Bruna Cusi, e de Mónica, a filha do casal, de Iris Vallés. As informações muito particulares que Muñoz vai conseguindo sobre Tomás, a exemplo de uma providencial alergia a amendoim, revelam-se cruciais a fim de dar corpo ao plano de reaver o, para ele, em seus delírios, o novo inquilino lhe tirou. Tudo saía à perfeição e de modo até muito fácil, não fosse pela imposição de outra figura nefasta, a do jardineiro Damián, de David Ramirez, que sabe das intenções de Muñoz, mas nada faz, porque também quer tirar um proveito asqueroso da empreitada do publicitário.
Sem muita margem para maiores elaborações, Àlex e David Pastor desdobram-se sobre a psicopatia do personagem de Gutiérrez, que sem tanto esforço além do já calculado para o que se torna a missão de sua vida, toma o lugar de Tomás, consegue tudo o quer e muito mais. Nem mesmo a ameaça de Marga, que se vale de um detalhe apenas sugerido no meio da trama, se revela minaz o bastante; o ressentimento, a mágoa, o ódio agora empedernidos por tudo o que passara — aliados à covardia, à ganância e ao senso prático da ex-mulher — não lhe permitem ter medo. Em “A Casa”, Javier Gutiérrez inclui Javier Muñoz no rol dos grandes psicopatas silenciosos do cinema, sem deixar nada a dever a Catherine Tramell, de “Instinto Selvagem” (1992), dirigido por Paul Verhoeven, ou Jack Torrance, o próprio mal feito carne, de “O Iluminado” (1980), levado à tela por Stanley Kubrick (1928-1999). E o pior é não achamos nenhum absurdo que, ao menos na ficção, eles nos seduzam tanto.
Filme: A Casa
Direção: Àlex e David Pastor
Ano: 2020
Gênero: Suspense/Terror
Nota: 9/10