Ter a audácia de desafiar o consenso e provocar a cólera da maioria, que quase nunca está lá muito apreensiva quanto a mudar o que precisa ser mudado, é um imperativo moral para uma classe rara de gente, aquelas pessoas que atravessam noites em claro só por causa da balbúrdia fundamental que reina no mundo. Evidentemente, nem todas as situações absurdas que se passam no cotidiano de cidadãos ou países inteiros merece a insônia das almas pias da Terra, porém existem realidades que sequer deveriam ser chamadas por esse nome, tal a discrepância com o mínimo que se reconhece como aceitável do ponto de vista do senso de humanidade, do decoro, da lógica. Cada qual usa as armas de que dispõe a fim de se livrar das ciladas que nós apresenta a vida, que em maior ou menor medida, se impõem a rigorosamente toda mulher e todo homem. Quem foi regalado pela natureza com uma inteligência privilegiada, artigo cada vez mais raro num mundo pautado por bestialidade e cortesia rasteira, decerto se sobressai em relação aos outros; daí é que vem aquele feixezinho de luminosidade capaz de afastar as trevas profundas da ignorância e da covardia, irmãs siamesas que condenam o ser humano ao atraso ao passo que o obrigam a cometer os mesmos erros um sem-fim de vezes.
A inteligência pode ser um dos grandes predicados de que alguém é constituído. Entretanto, se deixada crescer sem um e outro cuidado, como uma planta selvagem que não se conhece direito, a inteligência transforma-se no monstro que devora até o mais sábio dos homens sem que nem ele mesmo se dê conta. Uma vez que não se tem mais parâmetro para se discernir sabedoria de prepotência, remédios viram venenos e o talento se presta a homiziar toda sorte de perversões, voluntárias ou não. O personagem-título de “Luce” (2019) experimenta o fausto e as dores de ser um garoto exemplar — e esse epíteto tem um peso especialmente incômodo para ele. No filme, Julius Onah trata de assuntos sérios, e quanto mais pesa a mão, mais se faz necessário contar essa história.
Onah e J.C. Lee, com quem o diretor escreveu o roteiro, sabem muito bem o que querem: instigar os sentimentos mais dialéticos da audiência. Seu anti-herói, Luce Edgar, é um garoto negro superdotado, que vai deixando um ou outro indício de uma psicopatia latente, no ponto para despertar. Aqui, Kelvin Harrison Jr. encarna um tipo com angústias semelhantes às de seu personagem em “Monstro” (2018), de Anthony Mandler, embora com o sinal devidamente trocado. Se Steve Harmon era um rapaz preto bem-nascido e um excelente aluno, Luce se parece com ele apenas nisso — da mesma forma que “Monstro” é um filme de autor, um filme de formação, um filme indispensável, como este, com a diferença de que Onah se propõe a subverter os reiterados chavões presentes em tramas do gênero, um por um. Steve era filho de pais que compartilhavam da cor de sua pele, ao passo que Luce foi adotado, já depois de crescido, por Amy, a otorrinolaringologista psicologicamente instável de Naomi Watts, e Peter, interpretado por Tim Roth, pouco inclinado a fazer vista grossa aos jogos mentais do filho, mas um tanto suscetível à influência da mulher. Há alguns gatilhos narrativos perturbadores aí.
Os embates com a professora Harriet Wilson, vivida por Octavia Spencer (uma das produtoras do longa), já no começo da história, degringolam para as cenas de confronto eximiamente dirigidas, em que Harriet tem, afinal, a certeza de que está diante de um criminoso em potencial, sensação que lhe dera o artigo que Luce escrevera defendendo o uso da violência para garantir a observância de direitos. Essa subtrama, aparentemente tola — ou, no mínimo, ligeira —, tem o condão de dar estofo a todo absurdo que se segue, com uma mulher honrada e patologicamente solitária, como a personagem de Spencer em “Ma” (2019), de Tate Taylor, acuada por um adolescente mimado e perigoso. Ainda que seu impeça que o encarem dessa forma.
Filme: Luce
Direção: Julius Onah
Ano: 2019
Gêneros: Drama
Nota: 9/10