Vadias melhores virão

Vadias melhores virão

Charles Wilson anda mais cruel a cada dia. CW é o meu editor no jornal Correio Deselegante. Um degenerado. Herdou a joça toda de um tio pederasta solteirão que ganhava a vida aplicando golpes na praça, apostando em rinhas de pais de família e investindo o dinheiro que sobrava em títulos podres da União. Não sei o que o falecido tinha em mente — que o diabo o tenha — quando arrematou aquele jornal falido num leilão, mas, quem sabe, cometeu a extravagância com o intento de sanear a empresa e revendê-la mais tarde, auferindo um lucro indecente com o negócio.

O negócio é o seguinte: a minha paciência com Charles Wilson — mais conhecido entre os seus detratores como “o homem com cara de areia mijada” — está por um triz. A alcunha é bárbara, eu sei, mas, não fui eu quem a colocou. O magrelas quatro-olhos carrega o desonroso título desde a adolescência, por conta do rosto cravejado de cicatrizes acneicas. À época, os padres adotivos de CW ameaçavam o pobre diabo com uma lorota religiosa fundamentalista de que ele estava avariando a tez do rosto principesco por causa do excesso de masturbação. Se não parasse imediatamente de fazer justiça com as próprias mãos, perderia pontos com Deus para adentrar o paraíso, ficaria louco e lhe cresceriam pelos na palma das mãos. Um verdadeiro horror. Confesso que eu não aguentaria tamanha pressão. Pelo visto, a praga dos presbíteros não vingou 100% e CW veio a se tornar o patrão rico e odioso para quem trabalho desde os doze anos de idade, vinte e cinco horas por dia, oito dias por semanas, em troca dos maços de Jeronimo’s, das botijas de Cuspe Sour e das cápsulas restauradoras de Santa Terebintina.

O sujeito me chamou para uma conversa privativa na frente dos demais funcionários para dizer que Mirtes, a adestradora titular de micróbios da secretaria oficial de doenças do condado, tinha reclamado informalmente com ele, durante práticas de sodomia no laboratório central de colutórios da prefeitura — deste detalhe nauseabundo ele nos poupou, mas, todos já sabíamos —, que não lia mais o semanário por minha causa. Colocou a culpa nos meus textos. Enquanto se livrava de todo aquele sêmen caucasiano, disse-lhe que todas as vezes que corria os olhos nalguma coisa que eu tinha escrito, nem que fosse a merda de um soneto com rimas pobres e imperfeitas, sentia uma vontade tremenda de se matar, de se atirar de uma ponte. Ainda bem — para ela — que não havia pontes na região metropolitana de Arraial das Siriricas.

Enquanto os demais colaboradores colaboravam com o meu caos interior ao rir da minha cara de gênio incompreendido, botei aquele troço na cabeça. Sabem como são essas coisas. Benditas críticas destrutivas. Precisava rever com urgência o meu estilo literário, se quisesse continuar na ilusão de que um dia escreveria como um Paulo Coelho, como um José Sarney ou como um Marco Maciel. Pelo visto, baseado nos chiliques da microbiologista Doutora Mirtes — principal anunciante do Correio — e nas pilhérias dos meus colegas naquele jornal pelego, eu estava escrevendo na direção errada. No fundo, tinha a pretensão de ser amado pelos leitores. Não me julgava um gênio da raça, muito menos, um incompreendido, mas, as palavras de Charles Wilson fizeram um belo estrago na minha autoestima.

Deixei o meu paletó dependurado no encosto da cadeira para provar que estava ali fazendo o meu trabalho e fui tomar umas biritas em pleno horário comercial. Precisava amortecer os neurônios. Tinha uma meia dúzia de putas veteranas, mais uns três ou quatro caras de má aparência zanzando pela pista da Scandalous. Seymour, o barman efeminado que se dizia muito parecido com a Salma Hayek, tentava levantar o meu astral de todas as formas, mas, eu não lhe dava trela, ou acabaríamos na latrina dos colaboradores, onde eu seria obrigado a colaborar com a causa LGBTQI+, despejando artilharia pesada sobre ele. Estou apenas contando uma história verídica que jamais aconteceu. Entendam isso como quiserem, seus malditos. O meu negócio sempre foram as mulheres. Contudo, as sertanejas-universitárias da Scandalous mantinham uma distância segura da minha aura macabra, irritadiça, pois, pressentiam que, além de um escritor quebrado que imitava Bukowski, estava tendo um péssimo dia.

— Tenía muchas ganas de ayudarte, mi corazón — disse Seymour, com os lábios finos, as sobrancelhas feitas, num portunhol deplorável que, nem de perto, fazia lembrar a atriz mexicana Salma Hayek, a qual eu vivia confundindo com a Penélope Cruz. Quem seria mais bela?

Eram apenas três da tarde e eu já estava bastante inebriado. Sentia-me imerso numa bad trip, pior do que um presidente da república que não conseguia emplacar um segundo mandato, a despeito de toda a máquina estatal trabalhando em seu favor. A esculhambação à qual CW tinha me submetido na redação do Correio Deselegante servira para alguma coisa promissora, afinal. Eu estava reagindo, saindo da minha zona de conforto, ainda que fosse naquela desconfortável sensação de me enforcar com a própria gravata.

De repente, o sujeito que cuidava da trilha sonora daquele decrépito rendez-vous me solta “Harlem Schuffle”, dos Pedras Rolantes, em altíssimos decibéis. Foi como tomar um soco no estômago, no bom sentido. Senti que ainda estava vivo. Levantei os olhos, esperançoso como um meteoro viajando a caminho da Terra, e fui pego de surpresa quando uma mulher preta, esguia, monumental, com curvas generosas, carregada com um enorme píton amarelo sobre os ombros, subiu numa das mesas derrubando garrafas, cinzeiros e pílulas azuis, a dez palmos de distância da minha fuça.

A diva começou a sacolejar as alcatras e foi aí que eu tremi nas bases. Lembrei-me da famosa cena do bar no filme “Um Drink no Inferno”, do diretor Robert Rodriguez, e desejei do fundo do coração sumido que aquela pérola negra despejasse uma garrafa de moscatel numa das coxas, a fim de que o líquido escorresse pela perna, até o pé, cujas unhas estariam pintadas com as cores da bandeira nacional, numa inequívoca demonstração de fé e de patriotismo. No auge do meu delírio ufanista, eu aguardava boquiaberto pelo grand finale, ansioso por sorver aquela iguaria diretamente dos pododáctilos perfeitos que encheriam a minha boca de felicidade.

Mais animado do que um pinto no lixo, virei-me para pedir outra garrafa de Cuspe Sour para Seymour, o bartender transviado, mas, o sujeito tinha evaporado. Por onde andaria aquele filho de uma mãe?

Eberth Vêncio

É escritor e médico.