Terceira Guerra: Estados Unidos contra o capitalismo e a balalaica do fim do mundo

Terceira Guerra: Estados Unidos contra o capitalismo e a balalaica do fim do mundo

Leões e guepardos nunca se entenderão. Mas observe: não basta ser da mesma espécie para se viver em paz. Dois leões, duas águias ou dois ursos também irão às últimas consequências, até que apenas um deles domine o mesmo território. A sociedade humana é um espelho da natureza selvagem. E a guerra é selvageria em estado bruto. Dito isto, armas nucleares “poderão ser utilizadas” pela Rússia contra os inimigos, assegurou Dmitri Medvedev, presidente do Conselho de Segurança nacional russo. A informação, explícita, veio após a convocação de 300 mil reservistas pelo exército do país. A guerra entre as duas nações, que cinco meses depois de deflagrada parecia ter se estabilizado, ameaça progredir para um patamar inédito com a virtual anexação, pelo Kremlin, das quatro regiões separatistas. Quanto mais ela se prolonga — o suporte ocidental à Ucrânia é virtualmente infinito — maior é o risco para aquele desfecho, a partir do qual poderia se seguir uma retaliação da OTAN, implicando diretamente toda a Europa e Estados Unidos, implicando por sua vez o resto do mundo. Este — o indefeso texugo desta pequena fábula — seria sugado pelas consequências como água no ralo.

O marxismo sempre advertiu que o domínio do capital nunca garantiria a paz, antes o contrário. Movido por guerras, sua escalada levaria a humanidade a uma guerra total e à própria aniquilação. Porém o risco de guerra nuclear demonstra mais uma vez que diagnósticos históricos nem sempre merecem crédito. O ano de 1989 parecia contrariar a tese marxista, opondo-lhe a visão triunfalista dos adeptos do mercado. A data é um marco histórico porque decretou o fim da União Soviética, país que polarizava com o mundo capitalista e propunha um regime alternativo, seguido por diversas outras nações periféricas, pobres em geral. O colapso do comunismo levou ao fim da guerra fria, visto que as diferenças ideológicas e econômicas perderam o sentido. Sob a liderança de Mikhail Gorbachev a ex-república socialista aderiu à economia de mercado, do mesmo modo que a China de Deng Xiaoping o fizera no final dos anos 1970, na era pós Mao Tsé-Tung. Há desde então no mundo um só modo de produção quase absoluto, capitalista. O mercado trinfou, a prosperidade material chegaria a todos e a cooperação entre os iguais garantiria a paz mundial. A globalização estava, enfim, consumada, com a abertura das principais potências mundiais ao fluxo de mercadorias, de capitais e de pessoas. Baseado nessa ideia “generosa”, um historiador norte-americano, Francis Fukuyama, cunhou a famosa expressão “o fim da história”, título de um livro que publicou em 1992.

Trinta anos depois de 1989, é possível já extrair o prognóstico sobre aquele otimismo de capa: nunca a humanidade esteve tão perto da autoaniquilição quanto neste ano de Nosso Senhor, o Mercado, de 2022. Importantes países de economia capitalista voltam a se engalfinhar numa guerra potencialmente mais perigosa que as de 1914 e 1939 combinadas, e uma terceira potência, a China, se coloca ao lado da Rússia, ameaçando a hegemonia mercantil e global dos Estados Unidos, incontestável desde 1945. A equação neoliberal de Fukuyama estava errada principalmente por causa da aposta de que a economia de mercado se traduzia em democracia.

Acontece que a ex-União Soviética, e muito menos a China, nunca aderiram à democracia: continuam politicamente mais autocráticas do que nunca. O mercado, portanto, não é o único equivalente de democracia, em matéria de economia. O nazifascismo foi até aqui a prova mais brutal deste fato, podendo-se apequenar ante a guerra na Ucrânia e seus eventuais desfechos. Por vários motivos isso acontece, mas um é explícito: o desejo manifesto da Ucrânia de aderir à União Europeia e aos seus valores, cujo preço é a adesão ao Tratado do Atlântico Norte, OTAN. Gostemos ou não, Vladimir Putin está certo quanto ao fato de o Ocidente gradativamente cercar seu país, com que finalidades… ninguém sabe, mesmo? Forçar a democratização final da Rússia, talvez?

A expressão “o fim da história” perdeu a entusiasmada conotação original para significar o risco iminente da extinção humana por causa de uma nova (e talvez última) guerra entre economias de livre mercado. É sintomático que, já em 2020, a Rússia fosse ranqueada pela “Forbes” em quinto lugar entre os países com o maior número de bilionários: 99, somando US$ 385 bilhões e concentrando, em 2022, 58% da renda nacional — bem mais do que o Brasil (49%). Sabe-se que o regime do novo senhor da guerra tem lastros profundos com essa oligarquia de bilionários, sendo Vladimir Putin e Dmitri Medvedev dois dos personagens que mais lucraram com o fim do comunismo e com a abertura da economia russa. Eis os homens que estão resolvidos a retribuir as benesses do modelo ocidental com os lucros e dividendos de incontáveis cogumelos atômicos. É tanta bonança que vai sobrar para todos nós, sem distinção de origem e classe social. Finalmente, a igualdade prevalecerá neste mundo — igualdade que ainda pode vir do Oriente, como na época de Kruschev e Mao Tsé-Tung. Chancelada, no entanto, pelo mercado.

Ainda que a polarização entre modo de produção capitalista e comunista provavelmente chegasse ao mesmo resultado catastrófico, Marx e Lênin estavam certos quanto aos riscos intrínsecos da solitária hegemonia do capital. A razão pode ser melhor compreendida nos dias atuais, quando a mácula das “narrativas”, comprometida pela ideologia, não esconde mais a influência de outros fatores, além do econômico — já isto pode irritar os marxistas ortodoxos. Mas, além de interesses geopolíticas explícitos há, ainda, diferenças culturais, outra raiz do conflito entre Rússia e Ucrânia e do alinhamento chinês com os russos. Teme-se a ocidentalização das ex-repúblicas soviéticas, cerco que se fecharia contra a unidade eslavista de Putin e, em último caso, ameaça a existência da própria Rússia. O fato de o país ser capitalista nunca significou que esteja disposto a sacrificar suas características culturais, portanto. Em última análise, a identidade produtiva entre Ocidente e Oriente, a partir de 1989, não bastou para assegurar a paz mundial, assim como a ideologia comunista não pode mais fundamentar uma escalada militar: primeiro porque a Rússia nem é comunista mais; segundo porque a voracidade chinesa não visa a conversão dos “bárbaros” ao “Livro Vermelho” de Mao, mas a hegemonia de mercado. Assim, ainda que sobrevivamos ao ataque do urso, parece ser uma questão de tempo até o dragão e a águia se engalfinharem. Taiwan, como a Crimeia em 2014, é só o começo de tudo.

A sociedade civil mundial está anestesiada, em parte devido à sensação de irrealidade dessas ameaças, em parte ao sentimento de impotência. Além da própria escala deste acontecimento, como neutralizar os detentores de armas nucleares dispostos a explodi-las? Parece impossível. Talvez o mal exista: não no sentido religioso, em que o Diabo está por trás de todas as perversidades humanas. Não é o mal neste sentido metafísico, mas o mal enquanto simples força destruidora, inacessível à razão. É o mal enquanto força ingovernável dos únicos que têm o poder — mandatários e executivos de grandes corporações, em primeira linha — de colocar um ponto final no conflito. Talvez não o façam por razões de estado, ou mesmo por profundas razões de caráter e psicologia: podem simplesmente não possuir nenhuma afeição pela humanidade; bem como ter impulsos suicidas não resolvidos. Isto é outra forma de caracterizar o mal.

Seja qual for a explicação, a terceira guerra é um evento tão extremo que parece mesmo fantasia. No entanto, a qualquer momento podemos acessar a internet e descobrir que um novo cogumelo atômico se abriu, transformando-a em pavorosa realidade.

*Balalaica do fim do mundo é uma expressão criada pelo escritor Marcelo Mirisola e título de um artigo publicado na Revista Bula.

J.C. Guimarães

Crítico literário.