A biblioteca do diabo, que por acaso fica na minha casa, não tem uma negra, apenas três mestiços, Machado, Alexandre Dumas e Lima Barreto, nenhum indígena, e raríssimas mulheres, mas têm gays, e muitos gays enrustidos de direita.
Pretendo incendiá-la, e começar do zero. A ideia é preencher as prateleiras com escritoras que foram riscadas do mapa pelo patriarcado opressor, a começar pela homenageada da Flip deste ano, a maranhense Maria Firmina. Além, é claro, de ativistas gays negras e negros de esquerda, e mulheres eventualmente heterossexuais (desde que sejam feministas). Aceito sugestões.
Falando em gay enrustido e de direita, acho que o primeiro que vai para a fogueira é Jack Kerouac — o muso da contracultura dos sixties, que paradoxalmente era misógino, antissemita e apoiou a guerra do Vietnã. Ele e o paroxismo dele para a fogueira.
A regra para permanecer na minha prateleira — reparei nisso depois de quase 35 anos — a regra sempre foi a cor da pele, a truculência, o machismo e a misoginia. Devo agradecer, em primeiríssimo lugar, à tia Regina Dalcastagne da UNB, depois aos jurados dos concursos e curadores de feiras literárias, e aos coletivos de literatura das periferias, especialmente aos organizadores da Flup (festa literária das periferias) por me alertarem sobre esse lapso, ou melhor, para minha falta de caráter: pois nunca suspeitei que minha biblioteca podia ser estruturalmente machista e racista. Bem, nunca é tarde para mandar Graciliano Ramos para o lixo, autor declaradamente homofóbico e racista.
Outro escancaradamente misógino, e que foi condecorado por Pinochet, e nunca escreveu uma linha sequer sobre a genialidade e a negritude do nosso Machadão, e que — aqui entre nós — estava se cagando para nosostros “macaquitos”, é Jorge Luis Borges. Fogueira nele!
Só tem lixo nas minhas prateleiras, que horror! Tenho até vergonha em falar de Hemingway — como era branco esse sujeito, e armamentista!!!
E o dr. Louis Ferdinand Céline? — panfletário antissemita, racista e nazista: não bastasse, cínico e debochado. Tô vendo a lombada de Drieu la Rochelle, ah, esse já foi cancelado por Sartre na época dele, mas nunca é tarde demais para cancelar um colaboracionista outra vez. Né?
Nelson Rodrigues: autor de “Anjo Negro” — reacionário, mas tão reacionário e cínico que publicou um livro com este título! Não tem perdão, vai para fogueira dos puxadores de saco da ditadura, além de ter zoado incansavelmente dom Elder Câmara, um santo progressista. Agora, pior do que zoar dom Elder e puxar o saco do Médici no Maracanã, foi o Cony que escreveu junto com Otto Maria Carpeaux, o famoso editorial “Basta!” defendendo o golpe de 64, ainda que depois tenha capitulado. Mas isso não interessa, são homens brancos que sempre estão capitulando por interesses brancos, digo, obscuros. Ora, se são homens e se são brancos, logo são misóginos, machistas e não confiáveis. Para que perder tempo lendo essa escória?
E o que falar de Lewis Carrol e Nabokov? Carrol, ele próprio, documentou sua pedofilia ao fotografar Alice Liddell nua, a garotinha que o levou ao País das Maravilhas. E Nabokov? Outro homem branco mal-intencionado que embaralhou ficção com realidade para encobrir seus crimes, portanto culpado! Os autores de ficção têm de ser responsabilizados por suas genialidades, abusos e desvarios. E a ficção também devia ser criminalizada, e ponto final.
Aliás, graças aos deuses da censura, hoje as editoras estão recusando livros cujos narradores usam os termos “bicha” e “preto”, entre outras abominações. Só os personagens, em situações de clara e evidente denúncia de preconceito — e devidamente contextualizados — é que podem mencionar tais atrocidades. Não é lindo, tia Regina? Tá feliz? Tá realizada?
A gente nota que hoje, depois que cancelamos os escritores heterossexuais e brancos do nosso convívio, o mundo ficou bem mais fofo e amoroso, né? Se esse critério fosse usado há cem anos, eu não precisaria ter passado pelo constrangimento de ter lido tanta porcaria branca, racista e homofóbica. Para que Monteiro Lobato se temos os livros infantis do Lázaro Ramos?
Para que Henry Miller se temos Ailton Krenak? Hora de trocar os sábios do umbigo pelos sábios das florestas e das periferias. O lixo judaico-cristão e ocidental só fez produzir CO2, empestou a atmosfera e as consciências ao longo de milênios. Para que Aristóteles e Descartes e uma legião de brancos tóxicos se temos o oxigênio e o legado, as descobertas, os ensinamentos e as “escrivências” de dona Jacira, mãe do Fióti e do Emicida?
Não vou tolerar umbiguistas na minha nova biblioteca. Os escritorxs têm que simplesmente retratar a realidade, de preferência sua origem humilde e a crueldade que a sociedade branca e machista e opressora cometeu contra elxs. Nuances serão abominadas! E, na dúvida, como no caso de Salinger que morava com meninas de quatorze anos, e depois as descartava (por que será, tia Regina? Tédio ou abuso?) bem, na dúvida, o homem branco e heterossexual sempre será o culpado: in dubio pró-fogueira nele!
Bem, temos nossas exceções. Apesar de brancos, sabemos que batalham a causa dos fracos e oprimidos. Nesses casos, a gente finge que a obra deles é maior que a capivara. Foucault, por exemplo. Pode estuprar diboas as menininhas na Tunísia, e o casal Sartre e Simone também tem passe-livre para seduzir pré-adolescentes, sodomizá-las e mentir à la volonté, depois é só colocar a culpa na sociedade de consumo e no patriarcado. Tá tudo certo, o lugar deles, apesar da branquitude, vai estar garantido na nova biblioteca.
Mas voltando à selvageria dos machistas, misóginos, nojentos e brancos escrotos: Bukowski!
A pergunta é: como esse homem se atreveu a existir, e ainda se meteu a escrever livros de poesia? O citado misógino jamais fez um repente, nunca rezou a novena de dona Canô. E, não bastasse, frequentava corrida de cavalos! Um ser repugnante, cruel, elitista (ouvia Mahler!) e nojento, fogo nele!
Não vale mais a pena perder tempo com homens machistas, brancos e misóginos. O século 20 não fez outra coisa senão exaltar a branquitude e a macheza deles. Chega! Vão todos para o lixo!
Só pra citar mais dois machos brancos e canalhas, Primo Levi e Orwell. Como é que Levi se atreve a falar da condição humana sem se vitimizar? O sujeito pode até ter conseguido escapar das câmaras de gás nazistas, mas não vai se livrar da minha fogueira! Orwell? O Deus dele chama-se individualidade. Como é que alguém pode distinguir a individualidade em detrimento do coletivo? Infame! Herege! Fogo nele! Fogo neles!
Fogo em Dante Alighieri que ignorou os negros e quilombolas, portanto é racista, e não deu oportunidade para os mesmos desfrutarem do céu, e muito menos do inferno, como se não bastasse, o florentino branquelo e narigudo jogou os gays no purgatório, e ainda os separou entre aqueles que “dão” e os que “recebem” Homofóbico! Desumano!
Vou atear fogo em Reinaldo Moraes também, que é um branquelo hedonista e machista, responsável — crime hediondo: — por levar a voz do Frevinho da Oscar Freire para a literatura universal, fogo nele! Fogo em John Fante, aquele filhote de imigrantes italianos, carola e sardento, argh, pro lixo da história Dostoiévski e todos os Russos que, graças a Putin, já estão sendo cancelados, já vão tarde! Todos homens, e todos brancos!!!
Não tem uma mulher negra na minha biblioteca, percorri as prateleiras, e constatei que os outros 90 % dos autores não citados nesta crônica são todos homens e brancos, mea culpa, tia Regina, mea maxima culpa!
As poucas mulheres que existem por lá, também são todas brancas e heterossexuais. Preciso urgentemente jogar Marcia Denser no lixo e substitui-la por Djamila Ribeiro.
Ah, Marcia Denser. Talvez ela permaneça nas minhas prateleiras porque é mais macho, escrota e filha da puta, portanto mais branca, que a maioria dos homens citados. Os primeiros livros dela chegaram num lugar onde nenhuma feminista jamais se atreveu ou conseguirá chegar, sabe por que, tia Regina? Porque Márcia é escritora antes e apesar de ser mulher, vejam só que abominação! Heresia das heresias! Essa merece mergulhar no fogo das bizarrias e das apostasias — nada mais, nada menos que o inferno para ela! Não vai ter engajamento político partidário que a cure de ser um maldito animal literário nem que a isente dos livros que escreveu. Você está ferrada, Marcia, e vai para a fogueira junto com os machos brancos que a pariram, Faulkner, Oswald de Andrade, aquele macho-burguês e filhinho de papai ressentido, e todos os outros que você usou e manipulou — tanto faz mortos ou vivos — para escrever suas obras-primas. Nenhum negro, nenhuma negra sequer foram citados em seus livros, que eu lembre, não.
Também encontrei Jane Bowles, Carson McCullers, Joan Didion, Silvia Plath, Orides Fontela, e a asquerosa Raquel de Queiroz, outra sinhazinha puxa-saco de milico: afinal o que essas mulheres brancas fazem nas minhas prateleiras? As quatro primeiras sofrem do mesmo mal (talento que transcende o gênero) de Marcia Denser, já Orides era um ET completamente enredada na própria Teia que inventou para existir, nunca se engajou numa causa feminista porque a poesia e as próprias misérias lhe bastavam, e era branca e azeda, e transcendia o gênero também, como todas as outras. E o que dizer da falsa tímida Ana Cristina Cesar, manipuladora e dissimulada que escrevia cartas pros amigos como se eles fossem meninos de recado para a posteridade dela? Não passava de uma burguesinha metida a inglesa, linda, loira e de olhos azuis. Todas para a fogueira!
Se temos Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Maria Firmina, dona Jacira e Elisa Lucinda para que e porque perder tempo com esses branquelos opressores e racistas? Todes os branquelex para o lixo! E eu juntex!
Fogo neles! Agora sim, agora minha biblioteca está renovada, negra e femininex, cinco títulos no lugar dos cinco mil queimados e jogados no lixo. Alexandria é aqui, pense em Alexandria. Reze por Alexandria. Alexandria é aqui. Alexandria não é aqui. Aqui é a biblioteca do diabo.