Por mais voltas que o mundo dê — e por mais difícil que seja acreditar—, na vida tudo o que acontece observa uma norma. As verdadeiras coincidências são raras; tudo o que se passa na vida de cada indivíduo, de bom e de ruim, faz parte da imensa teia onde são urdidas todas as histórias de todas as criaturas sobre a Terra. A jornada do homem no mundo é um eterno vir a ser, por mais que ele se revolte e tente subjugar a força perene das coisas invisíveis, tentando moldar o rumo dos fatos de modo a ficar sempre por cima. Quando entendemos que não somos nada além de peças insignificantes de um jogo que começou antes mesmo que nascêssemos; que nossas vontades contam pouquíssimo no que deixa o plano das meras intenções e vai para o campo do real; que as tantas fraquezas que nos amarram, mas que também podem nos dar lições preciosas, fazem de nós seres imperfeitos e admiráveis, viver começa constituir-se uma aventura um pouco menos falta de sentido. Nesse momento, passamos a lutar com cada pedaço de vida a que temos direito, prontos a ver nos rivais os aliados que podem nos salvar do inevitável fim.
Por trás de uma carreira marcada por dramas vivazes, em que o curso dos acontecimentos parece disposto a atropelar o homem comum, e sobretudo o mais vulnerável a ataques, o diretor alemão Nils Willbrandt entrelaça as trajetórias de um trio de personagens ressaltando os pontos de contato entre eles ao passo que fala de suas carências muito particulares. “O Perfumista” (2022) é um conto repleto de lances improváveis, mas que se unem numa mesma direção, ainda que incerta. Willbrandt aposta no caos do roteiro propositalmente confuso, coescrito com Kim Zimmermann, para louvar essas três figuras tortas, perdidas em devaneios, ansiando por se libertar de maldições ancestrais. Willbrandt e Zimmermann adaptaram “O Perfume” (1985), do romancista tedesco Patrick Süskind, de modo a deixar claro que essa é a história de um homem extraordinário, dono de um talento que o impulsiona e o oprime. Dorian, o personagem-título vivido com visível entrega por Ludwig Simon, desenvolveu a habilidade de identificar qualquer cheiro, por maior que fosse a mistura de componentes numa mesma fórmula. É essa a característica que o distingue do restante da pedestre humanidade, e esse predicado raro, que exige delicadeza e contemplação num mundo que preza por rapidez e senso prático, é o que crê que seja o grande presente com que a vida o regala, o passaporte com que pode ascender de um histórico de privações para o estrelato na perfumaria. Sem pressa, Willbrandt introduz na narrativa os elementos que dão ao público as condições para deduzir que algo precisa ser esclarecido. Essa impressão recrudesce com a entrada em cena de Sunny, a detetive vivida por Emilia Schüle, que se transfere para um vilarejo na Alemanha profunda a fim de investigar uma série de homicídios que desafia as autoridades pela hediondez do método: as vítimas aparecem nuas, com incisões na cabeça, no pescoço e nas axilas. Conforme a história toma corpo, fica-se sabendo que o assassino extrai as glândulas sudoríparas e a tiroide daqueles que sevicia, uma óbvia crítica do diretor à necessidade de despertar nos indivíduos carências e desejos que jamais haveriam de despontar sem um impulso externo, definição um pouco menos áspera e mais lírica para o modus operandi do capitalismo, atenuada por um argumento coerente em produções congêneres. Karlotta König, a principal suspeita, trabalho de fôlego de Anne Müller, é um ex-gênio da matemática num périplo por instituições psiquiátricas desde que sofreu um acidente grave.
Arrazoado de tramas curtas que compõem o todo em que ganham mais importância, “O Perfumista” cheira a sonho. A natureza imponentemente onírica do filme de Willbrandt é um achado. Suave e enérgica, a heroína de Schüle tem direito à serenidade por que tanto ansiava, e encontra uma razão ainda mais forte para acreditar que pode ter tudo o que quiser.
Filme: O Perfumista
Direção: Nils Willbrandt
Ano: 2022
Gêneros: Crime/Drama/Thriller
Nota: 9/10