O capitalismo é um sistema cheio de particularidades. Da mesma forma que oferece a chance de ascensão social a indivíduos alijados pela própria vida das mínimas condições de desenvolvimento, sem um trabalho digno ou instrução formal que os ajude a consegui-lo, morando em choupanas de palafita ou de pau a pique sem abastecimento de água tratada, vendo o esgoto correr de porta em porta levando as moléstias que adoecem e matam seus filhos como há mais de quinhentos anos, o capitalismo, porque conduzido de maneira cruelmente equivocada, não manifesta por essas pessoas a menor compaixão, perpetuando um ciclo de miséria e abandono que não interessa a ninguém. Quanto mais populoso o país, mais visíveis essas desigualdades se tornam, como se gente fosse uma praga alastrando-se sem controle sobre um campo outrora produtivo, sempre à mercê da intervenção divina para voltar aos tempos de bonança. O problema é que Deus não toma parte nesses assuntos diretamente, uma vez que outorga ao homem a competência de os resolver. O que nos remete ao começo da discussão e nos autoriza a dizer que uma elite beócia, parasita e míope têm um interesse mórbido quanto a fazer a certas injustiças perdurarem, sem compreender o mais elementar: uma sociedade baseada na manutenção da pobreza da maioria para que uma minoria iníqua siga com sua bolha de privilégios cultiva a fera do ódio, cuja única razão de existir passa a ser preparar o bote.
Algumas das barreiras que o capitalismo não consegue derrubar são a matéria-prima que o irano-americano Ramin Bahrani aproveita em “O Tigre Branco” (2021), uma história da Índia contemporânea, cada vez mais acossada pela necessidade de se renovar, mas amarrada pelos hábitos arcaicos que fazem questão de mantê-la num passado de miséria atávica para a maioria, cenário bastante aprazível para uns poucos. Baseado no romance homônimo do indiano Aravind Adiga, publicado em 2008, o roteiro de Bahrani faz a radiografia de um país com fraturas expostas em seu tecido social, bem ao gosto de Hollywood — a indústria cinematográfica da própria Índia, por óbvio, devotou ao longa uma solene frieza —, problema que mesmo as produções bollywoodianas mais engajadas fazem questão de sufocar com os onipresentes musicais emoldurados pela fotografia cheia de cor e brilho, exaltação do que deveriam ser, não do que são na verdade. Tomando-se esse ponto de partida, pode-se chegar a conclusões o seu tanto iluminadas quanto ao que Índia pode vir a se tornar num futuro muito próximo. E o vaticínio não é nada animador.
As dimensões quase inestimáveis da Índia, da mesma maneira que acontece no Brasil, colaboram para sua desigualdade extrema, feita de 158 milhões de favelados, sendo que o total de pobres atinge a escandalosa dos 900 milhões, 70% da população de 1,4 bilhão. Para piorar, a mobilidade social é quase impossibilitada graças ao sistema de castas que sempre a regeu. Bahrani se vale da dura realidade indiana como um trampolim para mergulhar ainda mais fundo nas carências do país, acrescentando os elementos de crítica social que caracterizam seu trabalho, sensato inclusive ao tecer as diatribes muito bem fundadas contra o estabelecido. O diretor coloca na boca de Balram Halwai as sentenças anticapitalistas com que pontua sua narrativa, mas à medida que a história avança se nota que não se trata de nada disso. O anti-herói de Adarsh Gourav se salva da fome migrando de Laxmangarh, seu vilarejo natal, para Nova Déli, a “gloriosa” capital, onde consegue emprego como motorista na casa de Ashok Shah, o milionário vivido por Rajkummar Rao, de quem logo ganha a confiança. Agradecido num primeiro momento, o empregado logo se dá conta de que nunca será encarado como um homem, de igual para igual, enquanto for obrigado a vender seu único bem, sua força de trabalho. Bahrani vai aumentando as sequências em seu protagonista é infantilizado, comportamento de que involuntariamente se apropria, e sem força para fazer frente a circunstâncias tão adversas, temendo viver os tempos ainda mais amargos de Laxmangarh, apenas tolera sua vida.
Do segundo para o terceiro ato, a reviravolta que dá início a sua metamorfose, iniciada por Pinky, a dondoca interpretada por Priyanka Chopra, o conduz ao Olimpo em que sempre sonhara estar, malgrado nunca tenha conseguido realizar as fantasias sexuais com a mulher do chefe, que sempre o encarara como um irmão, ou como o filho que nunca tivera. Balram e Ashok trocam de lugar, como se essa fosse a grande recompensa para uma vida de privações. Uma visão de mundo reducionista, mas sem dúvida honesta.
Filme: O Tigre Branco
Direção: Ramin Bahrani
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 9/10