Ninguém está livre de tropeços, e de uma possível queda. Quanto mais se vive, mais se tem claro que a vida é um eterno cair e levantar, em maior ou menor intensidade, muitas vezes caindo mais do que nossa testa poderia suportar, mas ainda assim resistindo, como se dessa teimosia dependesse nossa própria sobrevivência — e quase sempre depende mesmo. Naturalmente, existe quem vá de tombo em tombo como se brincasse, da mesma forma que há os que levam uma eternidade para juntar ânimo para recobrar as forças e se pôr de pé de novo. Só quem experimenta o sapato é capaz de dizer o tamanho do aperto, torcendo para poder chegar ao fim da estrada. Cair não é nem nunca foi problema; a questão sempre foi ter a coragem de admitir-se débil, apesar das tantas pressões de um mundo sem lugar para os fracos, e começar tudo outra vez, do zero, se necessário, sem os sedutores autoenganos, tampouco as fantasias que se perdem no espaço de um instante, perfeitas apenas aos olhos de quem não nos conhece.
John Wells discorre sobre uma das grandes tragédias da natureza humana sem medo de pesar a mão de vez em quando, mas sempre tentando dar a seu filme a leveza de um suflê de grana padano ou o requinte de uma musse de chocolate belga. “Pegando Fogo” (2015) junta elementos aparentemente indigestos, como a ânsia de um homem por se reerguer depois de uma temporada no inferno, ao dia a dia da cozinha de um restaurante badalado, ambiente cheio de perigos. Essa versatilidade, essa amplitude de pontos de vista e esse tato ao lidar com assuntos espinhosos é o que faz do filme de Wells algo tão pouco usual, sobrando espaço ainda para uma paixão frustrada, um romance que se impõe sobre temperamentos pouco amistosos e uma reviravolta sutil, mas impactante, pontos altos do roteiro de Michael Kalesniko e Steven Knight. O diretor aproveita as sugestões de Kalesniko e Knight e delas lança mão no momento exato, deixando que cada subtrama cresça na hora certa e pelo tempo adequado, dando a chance de seu vasto elenco brilhar por inteiro.
Adam Jones, o chef de raro talento vivido por Bradley Cooper, é obrigado a sair de Paris depois de abusar da cocaína, de drogas injetáveis variadas e da paciência de traficantes pouco amistosos, a quem deve uma fortuna, e, depois de um autoexílio na Louisiana, no sudeste americano — Wells salpica os monólogos de Cooper com piadas politicamente incorretas saborosas, mas que podem ferir suscetibilidades mais escrupulosas —, se dirige para Londres, obcecado pela ideia de faturar sua terceira estrela Michelin, façanha para qualquer cozinheiro, de qualquer lugar do mundo, que a translação cinematográfica de Max, o ex-colega com quem pretende voltar a trabalhar, boa participação de Riccardo Scamarcio, define perfeitamente. Disposto a mover céus e terras para conseguir o que deseja, Adam volta a procurar Tony Balerdi, o maître de Daniel Brühl, que termina acedendo, por acreditar no colega com quem começara a carreira no restaurante de Jean-Luc, mas também por uma razão quase óbvia, que a composição de Brühl consegue revelar aos poucos, sem trauma.
Ainda no primeiro ato, Adam conhece Helena, a sous chef interpretada por Sienna Miller, mas Wells prefere apostar em tomadas de chamas crepitando em fogões de aço escovado, pratos de porcelana cintilantes, escumadeiras imponentes, mesas irretocavelmente postas e uma abundância de ingredientes finos da alta gastronomia internacional contemporânea que deixa até o espectador mais desatento com água na boca — toques do chef Mario Batali, consultor gastronômico do filme —, reservando para o desfecho o envolvimento romântico dos dois, inicialmente tumultuado (observe-se um jeito meio torto do personagem de Cooper atingir seus metas), além da ótima virada na revanche de Michel, o auxiliar de cozinha do mesmerizante Omar Sy.
Filme: Pegando Fogo
Direção: John Wells
Ano: 2015
Gêneros: Drama
Nota: 8/10