Violento e maluco, filme com Queen Latifah que acaba de estrear na Netflix vai te agonizar por 89 minutos Ursula Coyote / Netflix

Violento e maluco, filme com Queen Latifah que acaba de estrear na Netflix vai te agonizar por 89 minutos

Dramas de família são tão bem recebidos pelo espectador justamente porque quase todos somos cercados por pessoas, com quem partilhamos o sangue ou não, em que depositamos nosso afeto e nossas esperanças, cujas dores nos tocam de uma maneira peculiarmente incômoda e que, na maior parte das vezes, nos inspiram a abandonar as práticas que até não muito tempo nos envenenavam e buscar, mesmo que com algum sacrifício, superar o histórico de fracassos que continuam a nos fazer medo. Inseridos nesse universo particular, amadurecemos, nos sentimos preparados para encampar as outras guerras pelas quais vale a pena se bater, levantar-se contra as mais abjetas injustiças da vida sem esperar recompensa de ninguém, apenas levado pelo sonho de fazer do mundo um lugar menos iníquo para nossa descendência. E dramas de família incrementam muito seu potencial de comover e sensibilizar os raros corações puros que restam quando fazem questão de reforçar as eternas discussões para as quais ninguém nunca é capaz de dar um fecho, mormente se personificados por uma figura duplamente vulnerável.

Mães costumam ser dotadas de uma sensibilidade algo sobrenatural quanto a identificar o que é necessário ser feito para a preservação de sua espécie e colocar as mãos à obra, preferindo achar que todo sacrifício é pouco e que enquanto permanecerem todos juntos não há de acontecer nada de tão ruim. Esse é o perfil da mãe sobre quem Millicent Shelton se debruça em “Fim da Estrada” (2022), carregando nas tintas de assuntos sempre urgentes. O roteiro de Christopher J. Moore e David Loughery prima por uma confusão intencional na abertura, poluindo a narrativa com informações visuais que, a pouco e pouco, se mostram relevantes para a compreensão do que se vai assistir. Uma mulher visivelmente nervosa, talvez angustiada, faz pequenas compras na loja de conveniência de um posto de combustível. Depois de algum constrangimento na hora de pagar, por causa de problemas com o cartão de crédito, sai, entra no carro e pede ajuda a um tal de Jake, que não está em cena. Volta para casa e se depara com a filha nos braços de um possível namorado; repreende a garota, termina de guardar bagagens no porta-malas e pouco depois vê o irmão chegar, envolto numa indefectível névoa de maconha, o que dá a impressão de ser um fato consumado, uma realidade embaraçosa com que já aprendeu a lidar. Prefere entrar e chamar o filho menor, que resiste a sair, mas acaba saindo; tem de sair. Quando estão todos reunidos, ela dá a partida e eles vão embora do Arizona para algum lugar desconhecido e inóspito no Texas.

O grande erro de Shelton é querer destrinchar tantas subtramas em pouco mais de hora e meia. Brenda Freeman, a anti-heroína chorosa, mas carismática, de Queen Latifah, leva os seus por uma viagem que se vai revelando uma prova de fogo, com direito a todos os clichês dessas histórias, até que começa a engrenar — malgrado de um jeito meio abrupto —, levando à tela as situações que justificam o longa. Depois de abastecer o carro, ela passa a ser perseguida por uma dupla de caipiras, até ser obrigada a parar na rodovia para se desculpar por ter atentado contra a vida “branca” dos dois. O diretor dá uma guinada para um black horror à Jordan Peele, infelizmente resumido demais, até chegar ao ponto em parecia querer estar desde o princípio. Brenda e a família se hospedam no quarto de um hotel de beira de estrada e ouvem um tiro durante a madrugada. O hóspede morre, mas deixa uma mala de dinheiro, de que Reggie, o irmão-problema de Ludacris se apropria. A personagem de Queen Latifah é, como sói acontecer nesses casos, a última a saber e são todos caçados por um bandido nada óbvio, cujo disfarce é um dos pontos altos do filme, argumento muito semelhante ao de “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007), dos irmãos Ethan e Joel Coen.

“Fim da Estrada” acaba bem (ou mal, a depender da visão de mundo de quem assiste), mas para uma coisa não há muita margem para devaneios de interpretação: já não se fazem mais bandidos e mocinhos como antigamente.


Filme: Fim da Estrada
Direção: Millicent Shelton
Ano: 2022
Gênero: Thriller/Drama
Nota: 6/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.