A alma do homem é cheia de meandros, reentrâncias, lugares tão escondidos e tão poucos iluminados que ninguém é capaz de acessar. Há quem encare problemas de qualquer natureza como uma forma de se autoconhecer, se testar, se superar, saindo, em correndo o ouro sobre e azul, muito mais resistente para a próxima dificuldade ao final do processo. Por outro lado, existem os que simplesmente bloqueiam a mínima possibilidade de que passe um feixe de luz sequer por entre esses monólitos: quanto mais encalacrado está, mais fica e, pior, mais gosta. Depreender que a vida é uma luta desigual, em que não podemos fazer nada e só nos cabe lamentar — e resistir — pode ser uma maneira de tomar o assunto. Grandes pensadores e artistas foram niilistas convictos e aferrados, ainda que não o alardeassem e, muito menos, o quisessem empurrar goela abaixo dos outros, a exemplo de Friedrich Nietzsche (1844-1900), que legou textos com a mais completa e sábia negação da ideia de felicidade para o homem, decerto influenciado pela sua própria desdita, e Gustave Flaubert (1821-1880) cujos escritos denotam a incontornável fragilidade e incapacidade de reação do espírito humano frente às armadilhas que a sorte lhe prepara. Talvez o mundo seja mesmo uma grande massa de água, terra e ar, oriunda do nada rumo ao nada, insensível aos esforços do homem a fim de mudá-lo ou, ao menos, torná-lo menos selvagem. Nessa trilha do mais desolador niilismo, a Bula separou cinco filmes que vão fazer (mais) estragos na sua cabeça. Os títulos aparecem em ordem contra-cronológica, do lançado há menos tempo para o mais antigo, lembrando que você, nosso melhor crítico, é que nos diz qual o melhor. Deixe lá fora toda a esperança e entre no infinito universo de devaneio e destruição por trás — e dentro — de todo homem.
Quem gostou de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” vai aprovar o filme de Charlie Kaufman, adaptação do romance de estreia do escritor canadense Iain Reid sobre uma mulher que depois de seis ou sete semanas quer terminar o relacionamento, mas mesmo assim aceita viajar para conhecer a fazenda dos pais do namorado, o que vai fazê-la repensar muitas coisas. Ao longo do deslocamento, a protagonista se percebe tomada por um fluxo de pensamentos monomaníacos que incluem, sim, romper com o parceiro, mas sugerem também mudanças muito mais profundas. Ao chegar à propriedade e conhecer o estranho casal, ela acaba sem saber muito bem onde está pisando nem o que deseja na verdade.
O brilho do sucesso, da glória, não ofuscou Robert Eggers. Aclamado pela excelência de “A Bruxa” (2015), Eggers segue na trilha do terror soft e em “O Farol” arranca uma das muitas máscaras da loucura em dois personagens condenados a viver num inferno muito peculiar. O filme suscita o medo, o pânico até, mas para isso se vale de premissas sofisticadas, só vistas em produções dos mestres máximos do gênero. “O Farol” é um pesadelo, e tanto pior que não seja o de quem assiste ao longa, porque não se sabe ao certo quando se pode vislumbrar um fim para a cornucópia de imagens assombrosas que se veem na tela. Um ataque aos sentidos, nada se permite definir em “O Farol”, e é esse justamente o seu trunfo. Viver numa ilha na costa nordeste dos Estados Unidos, num tempo ainda mais obscuro que o nosso, deve ser o bastante para se tentar desvendar a insânia de seus protagonistas. Ir além pode ser uma viagem sem volta.
Numa prisão, detentos são alimentados por uma plataforma descendente. Esse mecanismo faz com que os que estão nos níveis mais altos comam em demasia, enquanto os dos andares mais baixos passem fome, até que um dos confinados se rebela e tenta transformar o sistema, sem entender que há uma lógica na sua perversão. “O Poço” é uma alegoria inteligente e criativa, ainda que um tanto chocante, sobre a sociedade num país qualquer da América Latina, desigual e injusto, mas também do próprio gênero humano, onde quer que se estabeleça: é da natureza mesma do homem, completamente perdido no mundo, subjugar seu próximo, aprisioná-lo e tirar dele todas as vantagens possíveis. Até um naco a mais de carne.
Aos poucos, Fede Alvarez galga o Olimpo rumo ao posto de diretor queridinho de Hollywood. Foi a partir do aclamado curta “Ataque de Pânico” (2009), em que robôs investem contra Montevidéu, que Alvarez se cacifou junto aos grandes do mercado cinematográfico e, em 2013, dirigiu “A Morte do Demônio”, produzido por Sam Raimi. Com “O Homem nas Trevas”, segundo longa-metragem do diretor, Alvarez mostra que está cada vez mais afiado, em cenas com a medida exata de suspense. Uma pequena gangue de assaltantes segue dando trabalho à polícia, graças à destreza com que realizam os roubos. Ao descobrir que um homem já entrado em anos, e cego, recebe uma vultosa herança por conta da morte da filha — e que guarda a bolada em sua casa —, eles vão para o tudo ou nada. E, pelo menos para eles, é nada. A vítima, um veterano de guerra, tem grande experiência com armas, e em combater inimigos. Esse aparentemente inofensivo velhinho, na verdade, guarda alguns segredos, e nisso a narrativa cresce. Bandidos assumem uma natureza vulnerável e quem passa a dar as cartas é o ameaçado. O espectador também cai, com gosto, na armadilha preparada por Alvarez, e se põe a conjecturar sobre quem é menos vil na história. Surpreendente, pleno de reviravoltas, filme em que se torna impossível calcular o próximo lance, como se não fosse suficiente, “O Homem nas Trevas” ainda pode se orgulhar de seu exíguo, mas bravo elenco, que à medida que apresenta performances diametralmente contrárias ao óbvio, sobe o nível desse thriller. Apesar de tantas cenas indigestas, “O Homem nas Trevas” desce redondinho. A direção de fotografia, irretocável, destaca o claro-escuro do ambiente, uma extensão da própria aura da história, fazendo do conjunto uma composição bastante harmoniosa.
Cria do teatro, Roger Eggers mostra a que veio já em seu début na sétima arte. “A Bruxa” apresenta apuro estético e veracidade em cada uma das cenas que compõem este longa de 2h20. Eggers presenteia o espectador com um filme espantoso ao contar as desventuras de William e Katherine, um sombrio casal de imigrantes ingleses que se estabelecem na Nova Inglaterra, Estados Unidos. Forçados a deixar o lugar onde se instalaram primeiro, se dirigem para uma floresta. As desgraças pelas quais vêm se defrontando são coroadas quando o filho mais novo, um bebê de poucos meses, simplesmente some diante da irmã mais velha, que tomava conta dele. A garota é acusada pelo desaparecimento do pequeno devido a um mal-entendido, fruto de uma brincadeira infeliz que fizera com outros dois irmãos. A numerosa prole, composta por cinco filhos, vai diminuindo sucessivamente, e resta claro que há mesmo uma entidade demoníaca se instalando no seio dessa família.